Os primeiros automóveis chegaram ao Brasil nos anos 1890. Porém, somente uma década depois essa novidade motorizada se tornou uma visão comum nas ruas de nossas grandes cidades, notadamente, Rio de Janeiro e São Paulo.
Como os emplacamentos ficavam a cargo das prefeituras, não há dados nacionais unificados sobre a frota da época, mas podemos ter uma boa amostra do que rodava no país a partir de informações referentes ao Rio, então capital federal. De acordo com o Censo demográfico de 1900, o Rio era a cidade mais populosa do país, com 746.749 habitantes, contra 239.820 de São Paulo (sim… acreditem: era só isso mesmo. No país inteiro havia 17 milhões de pessoas).
O trânsito na Avenida Rio Branco em 1915
Em 1904, havia no Rio apenas 7 automóveis, com destaque para os modelos a vapor White — até o prefeito Pereira Passos, que remodelou a cidade entre 1902 e 1906 andava em um carro dessa marca norte-americana. Entre os exemplares com motor a gasolina, havia o alemão Benz (a marca ainda não havia se unido à Daimler/Mercedes) e o francês Panhard & Levassor. Na cidade existia até um De Dion Bouton convertido ao uso de álcool, um combustível que devia ser mais fácil de encontrar que a gasolina. Lembrem-se que não havia postos e a gasolina era vendida em latas de 5 litros importadas da França e dos EUA.
São Paulo, por sua vez, mostrou desde muito cedo sua paixão pelos carros e já tinha 100 automóveis em circulação em 1907 — o Rio, com uma população três vezes maior, tinha apenas 99 exemplares naquele mesmo ano.
O grande incremento na frota carioca se deu entre 1905 e 1912. Nesse espaço de sete anos, o número de carros de passeio, comerciais leves e caminhões no Rio deu um salto de 12 para 2.500 automóveis, caminhões e ônibus — um aumento de 20.733%!
Dietrich no centro do Rio (1908)
Boa parte dessa frota pertencia às “garages”, empresas que alugavam automóveis, com chofer incluído, para eventos especiais, como casamentos e batizados, bem como para fazer bonito numa ida ao teatro ou um passeio em família. Também eram numerosos os automóveis usados em serviços públicos, como ambulâncias, viaturas policiais, caminhões de bombeiros ou, simplesmente, no transporte de figurões da República (especialmente no Rio). Em 1912, todos os ministérios já haviam abandonado os velhos carros de tração animal.
Em São Paulo, os carros eram quase todos particulares. Muitos eram adquiridos na capital, por ricos fazendeiros, e levados de trem para o interior unicamente para circular entre a propriedade rural e a estação ferroviária mais próxima.
Quem curte automóveis hoje em dia ficaria surpreendido com a quantidade de fabricantes existentes antes da Primeira Guerra Mundial. Em 1912, havia registrados no Rio carros e caminhões de nada menos que 178 marcas.
Um Benz na Rua Primeiro de Março, centro do Rio
Algumas tinham representantes fortes no Brasil. Outras eram trazidas por importadores que trabalhavam com todo tipo de produto (como bicicletas, fonógrafos, perfumes e máscaras de carnaval). Ainda mais comuns eram os aventureiros que traziam um único carro da Europa, para mostrar na vitrine, e tentavam estabelecer um negócio a partir de catálogos de encomendas. Por fim, havia os endinheirados que viajavam ao exterior e, na volta, traziam um automóvel na bagagem.
A grande maioria dessas 178 fabricantes tinha apenas um ou dois exemplares de seus carros na cidade. Peças, assistência técnica e garantia? Esqueça. Era tudo errático e incerto. Imagine a logística que seria necessária para atender a tamanha diversidade da frota. Havendo problema, tentava-se dar um jeito com um mecânico de bicicletas e um torneiro hábil.
Voltemos às estatísticas de 1912: daqueles 2.500 carros que circulavam no Rio de Janeiro, 934 eram franceses (ou seja: 37%). Em seguida vinham os fabricantes alemães, com 817 exemplares (32%). Os norte-americanos estavam em terceiro lugar, mas ainda bem longe, com 245 automóveis (9,8% da frota). Os italianos apareciam logo em seguida, com 232 carros (9,2%). Daí, uma surpresa para os motoristas de hoje: a indústria suíça estava bem representada em nossa frota, com 134 veículos (5,3%), superando até as marcas britânicas, que tinham 93 carros emplacados na cidade (3,7%). Explicaremos isso mais adiante. Completavam a lista 44 carros fabricados na Bélgica e 1 produzido na Áustria.
Salão de vendas da Carlos Schlosser em 1911, com um Saurer e dois Benz
Das 178 marcas que tinham carros emplacados no Rio, 51 eram francesas. Os catálogos que chegavam aqui também eram escritos em francês, com os preços dos automóveis indicados em francos em vez dos nossos contos de réis. Muitos desses carros vinham com radiadores insuficientes para o calor dos trópicos e embreagens frágeis para as condições viárias do país. E aqui chegamos ao ponto principal desta reportagem: quais eram as marcas mais vistas em nossas ruas no alvorecer do automóvel no Brasil?
A alemã Benz liderava a frota em circulação na capital federal em 1912, com 221 carros de passeio e veículos comerciais. Seu representante no Rio e em São Paulo era a firma Carlos Schlosser & C, muito bem estabelecida nas duas cidades (com lojas na Avenida Rio Branco e Rua Ipiranga, respectivamente). Em 1913, o jornal carioca “O Paiz” promoveu um concurso sobre a marca preferida dos leitores, e a Benz ganhou de lavada. Os carros da fabricante de Mannheim eram tão numerosos por aqui antes da Primeira Guerra que ainda restam remanescentes dessa época no Brasil.
Berliet em 1909
Uma francesa disputava o primeiro lugar com a Benz: era a Delahaye, com 181 carros em circulação no Rio em 1912 — até o ano anterior, a Delahaye liderava o mercado. Seu agente geral para todo o Brasil era a A. Thomas & C., com sede na Avenida Rio Branco, no renovado coração da capital federal. Fundada em 1895, a Delahaye existiu até 1954, quando foi absorvida pela Hotchkiss.
O terceiro lugar em emplacamentos no Rio era da NAG, sigla de Neue Automobil-Gesellschaft. A marca foi fundada em 1901 como uma divisão automotiva da fábrica de equipamentos elétricos AEG, de Berlim. Apesar disso, seus modelos eram movidos a gasolina. Em pouco tempo, a NAG tornou-se independente e ganhou importância. Em 1912, seu representante no Brasil era a Herm.Stoltz & Co., com sede no Rio de Janeiro (Av. Rio Branco, mais uma vez) e filiais em São Paulo, Santos e Recife. Os últimos carros da marca foram produzidos em 1934.
A quarta posição no ranking era da Berliet, com 109 unidades registradas na capital federal em 1912. Desde a década anterior, os carros dessa marca francesa já tinham boa presença por aqui (depois da Primeira Guerra, ficaria mais conhecida por seus caminhões). Sua representante no Brasil era fortíssima: a Antunes dos Santos & Comp., companhia ligada à navegação e que também representava a Renault e a Michelin no país, com escritórios no Rio, em São Paulo e em Santos.
Anuncio Renault e Berliet (1913)
A quinta marca mais numerosa era justamente a Renault, com 104 carros circulando no trânsito carioca em 1912, o que atesta o poder da Antunes dos Santos. Na época, os Renault eram facilmente reconhecidos nas ruas por seu capô bicudo e fechado. É que o radiador ia escondido entre o motor e a parede de fogo, dando ao carro um visual bem diferente do que se via nos modelos de outros fabricantes. Numa dessas coincidências históricas, a Renault também está em quinto lugar no ranking de emplacamentos de carros e comerciais leves no Brasil, em setembro de 2024!
Em sexto lugar estava a Saurer, então a principal marca de veículos pesados no Brasil. Em 1912, havia na capital federal 94 caminhões dessa fabricante. Com sede na cidade de Arbon, na Suíça, a Saurer era líder mundial em seu segmento, com linhas de produção até nos Estados Unidos. No Brasil, era representada pela Carlos Schlosser & C, mesmo agente da Benz e dos pneus Continental. Os últimos caminhões Saurer foram produzidos em 1987. Em 2003, um Saurer 1911 — remanescente dos tempos da Carlos Schlosser — foi levado de Vassouras (RJ) para o museu dedicado à marca, em Arbon. A indústria automobilística suíça também estava bem representada no Brasil pelos carros da fábrica Piccard-Pictet (Pic-Pic).
Caminhão Saurer 1911 (Foto - Diego Speratti)
O sétimo lugar era da francesa De Dietrich, com 90 carros. Essa marca chegou aqui ainda na primeira década do século XX. Um Lorraine-Dietrich 60 CV foi o primeiro automóvel a subir a serra entre o Rio e Petrópolis. Foi em 1908, com Gastão de Almeida, ao volante — na época, não existia estrada de rodagem entre as duas cidades. A marca era representada aqui por Jorge Haentjens & C., da Auto-Palacio, no bairro do Flamengo. O versátil estabelecimento era uma mistura de garagem, oficina, posto de gasolina, borracheiro, loja de acessórios, agência e importadora. Duas vezes campeã nas 24 Horas de Le Mans (1925 e 1926), a Lorraine-Dietrich produziu seu último carro em 1935.
Na oitava posição, estava uma marca muito conhecida até hoje: a Fiat, com 77 automóveis na capital federal, em 1912. Na época, o agente geral da marca no Brasil era Alfredo Elysiario da Silva, com sede no Rio de Janeiro. Vendia não apenas modelos de passeio, como chassis para caminhões e “auto-omnibus”, como se dizia. Foi montando um Fiat, em 1907, que a encarroçadora paulista Grassi deu seu passo inicial na produção de veículos. Também foi um Fiat o primeiro carro a vencer uma corrida oficial no Brasil: o Circuito de Itapecerica (SP), em 1908. Ao volante estava Sylvio Penteado.
Em nono lugar vinha a Opel, com 67 carros. A marca de Rüsselsheim tinha como únicos representantes para o Brasil a firma carioca Hugo Heydtmann & C., com sede na Avenida Rio Branco e oficina no bairro do Flamengo. Sua linha de carros de passeio era extensa e os anúncios apregoavam o “stock completo” de peças de reposição para todos os modelos, o que devia ser raro na época. Além de automóveis, o agente vendia máquinas de costura e bicicletas da fabricante alemã.
Chegamos, enfim, à décima marca no ranking de 1912: a Mercedes (que, na época, ainda era concorrente da Benz). Com 55 carros circulando no Rio de Janeiro, a fabricante tinha como únicos representantes para todo o Brasil a firma Werner, Hilpert & Co, com lojas na Avenida Rio Branco (Rio) e Rua São Bento (São Paulo). Os Mercedes eram vendidos como “os automóveis mais resistentes e os mais elegantes”, enquanto os caminhões Daimler, da mesma fábrica, eram chamados de “os mais fortes do mundo”. Já havia até uma versão bitrem, para 10 toneladas!
A lista dos carros mais comuns nas ruas do Rio prossegue com marcas como Pope-Hartford, SPA, Charron, Humber, Stoewer, Panhard, Gaggenau, Metallurgique, Diatto, Rochet-Schneider, Pic-Pic, Knox, Cottin & Desgouttes e tantos outros nomes que já tiveram fama mas se apagaram com o passar das décadas. Havia ainda 11 automóveis elétricos na cidade.
De marcas presentes até hoje em nosso mercado constam a Peugeot, com quatro carros, e Audi, com apenas um. A Chevrolet havia acabado de ser fundada nos EUA (em novembro de 1911) e ainda não chegara por aqui. A Dodge sequer existia.
A Ford, que já estava começando sua revolução nos EUA, ainda aparecia em um modesto 26º lugar no ranking carioca, com apenas 18 carros. Mas logo, viria a Primeira Guerra, os europeus deixariam de ser os protagonistas dessa história e todo o Brasil seria tomado pelo Modelo T.
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