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Vai a Buenos Aires? Visite o museu do Automóvil Club Argentino

Coleção tem carros do século XIX e Ferrari de Fangio. Entrada franca

O par de Panhard et Levassor (1904 e 1908) na entrada do ACA (Jason Vogel) (2)
Foto de: Motor1.com

Buenos Aires é hoje o segundo destino mais procurado pelos brasileiros no exterior (perdendo apenas para Santiago), mas poucos dos turistas apaixonados por carros sabem que na Avenida del Libertador, ali pertinho do Museu Nacional de Belas Artes, do Malba e do Cemitério da Recoleta, existe uma coleção de veículos dos primórdios da era motorizada. E o melhor: a visita é totalmente grátis!

Estamos falando do museu do Automóvil Club Argentino, no elegante bairro de Palermo Chico. Enquanto entidades como o Automovel Club do Brasil e o Touring Club do Brasil definharam ao longo de décadas (em especial, quando cartões de crédito e seguradoras passaram a oferecer serviços de reboque), o Automóvil Club Argentino (ACA) acaba de completar 120 anos, ainda muito forte e ativo. Sua sede fica na Avenida del Libertador 1.850, em um monumental e bem conservado edifício de doze andares inaugurado em 1942.

É ali que está instalado o museu, dividido em três ambientes. O acervo exposto é relativamente pequeno, com uns 30 veículos, mas chama a atenção pela raridade e antiguidade dos carros, em sua maioria produzidos entre os anos 1890 e as duas primeiras décadas do século XX. Quase todos estão em condições de funcionamento e, volta e meia, fazem aparições em eventos como a AutoClásica ou o Gran Premio Recoleta-Tigre, recriação anual da primeira corrida disputada na Argentina.

Galeria: Museu do ACA - Buenos Aires (ARG)

A coleção que hoje compõe o museu começou a ser formada ainda na década de 1940, logo após a inauguração do edifício do ACA, com carros que haviam sido conservados pelos sócios mais antigos do clube. Com as seguidas mudanças de administração, porém, algumas das preciosidades foram transferidas para lugares cada vez mais distantes e com crescente desmazelo. Em 1970, os carros se deterioravam a céu aberto, já sem os faróis de bronze, os instrumentos de painel e as buzinas rapinados por caçadores de souvenirs. Muito do que não foi roubado foi parar no lixo.

Na década de 1980, os carros sobreviventes, enfim, começaram a ser restaurados por iniciativa do engenheiro Rafael “Rafa” Sierra (1922-2022), funcionário do clube. Desde então, o serviço vem sendo feito aos poucos, por diferentes especialistas argentinos como Jorge e Luis Penedo (pai e filho), Néstor Salerno, Hector Purriños e a equipe de Luis Spadafora, do Museo del Automóvil (que é outra coleção a se visitar: fica no bairro de Villa Real, a 30 minutos de carro da sede do ACA).

Século XIX

Pela idade de alguns carros, o visitante se sente tendo uma amostra grátis da coleção Schlumpf, na França - mas com sabor portenho. O mais antigo do acervo é um Daimler 1892 com quatro lugares vis-à-vis (ou seja: um dos passageiros ficava bem na frente do chauffeur). O motor de dois cilindros vai montado no eixo traseiro e o câmbio de quatro velocidades funciona por meio de oito polias de distintos diâmetros acionadas por quatro correias de couro.

Ao lado está um Benz 1899 (a marca, vale lembrar, só se juntaria à Daimler em 1926). O modelo exposto no ACA, curiosamente, não tem eixo dianteiro. Em vez disso, as rodas da frente são montadas em dois garfos semelhantes aos de bicicletas. A parte superior desses dois garfos é unida por uma barra de direção, com uma alavanca no lugar do volante.

O Benz 1899 sem eixo dianteiro (Jason Vogel) (2)
Motor1.com

O Benz 1899 sem eixo dianteiro (Jason Vogel)

A transição da tração animal para o automóvel fica ainda mais clara quando vemos o Krieger, um enorme carro elétrico francês, de 1898. Com aparência de uma sinistra carruagem negra e dois motores elétricos nas rodas da frente (sim, tem tração dianteira!), este exemplar ainda marca presença nos encontros de carros antigos em Buenos Aires, onde desfila em silêncio diante de olhares incrédulos do público atual. Imagine o choque que causava há 126 anos.

Temos ainda outro francês do século XIX: um Mors 1899. Esta marca, há muito esquecida, foi importantíssima nos primórdios do automóvel. Nas primeiras corridas, sempre disputava a liderança com os Panhard et Levassor. Foi pioneira na produção de motores em V (no caso, V4) e no uso de carburadores de corpo quádruplo, antepassados remotos dos quadrijets. Contratado pelo fundador Émile Mors, André Citroën iniciou sua trajetória automobilística nessa empresa, chegando a presidente da companhia em 1908.

Rodas altas

No mesmo salão há três high-wheelers, modelos que estiveram muito em voga nos Estados Unidos entre as décadas de 1890 e 1900. Com rodas altas (daí o nome) e estreitas, geralmente de madeira e cobertas por aros de borracha maciça, esse tipo de carro era feito para vencer os péssimos caminhos da época, com muitos atoleiros e valetas. Pareciam mais charretes do que automóveis. Quando as estradas foram melhoradas, os vagarosos high-wheelers saíram de cena. No museu da ACA, porém, continuam muito presentes, na forma de um Holsman 1903, um Schacht 1904 (irmão gêmeo de um que existe no Brasil) e um International tipo D, de 1907.

Outro carro da primeira década do século XX é um De Dion-Bouton. A pioneira marca francesa já fazia quadriciclos a vapor anos antes de Gottlieb Daimler e Karl Benz fabricarem seus primeiros carros com motor a explosão. Por uns tempos, a De Dion-Bouton foi a maior fabricante de automóveis do mundo. O exemplar no museu foi produzido em 1901. Tem motor monocilíndrico a gasolina de 1 litro e 9 cv, câmbio de três marchas e transmissão por corrente.

De Dion-Bouton 1901 (Jason Vogel) (3)
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De Dion-Bouton 1901 (Jason Vogel)

Uma boa amostra do que havia no Brasil

O museu dos argentinos é uma maneira de conhecer modelos hoje extintos no Brasil, mas que já foram comuns em nossas ruas. Pode-se até imaginar um navio partindo de Le Havre, na França, cruzando o Atlântico e desembarcando alguns automóveis no Rio de Janeiro, antes de zarpar rumo a Montevidéu e Buenos Aires para deixar o resto de sua carga.

Antes da Primeira Guerra, fabricantes francesas como a Darracq foram importantes não só na Argentina como no Brasil. Tanto no Rio quanto em São Paulo, a marca era representada pela pioneira firma Isnard & C. No museu, um Darracq 1904 chama a atenção por seu radiador com uma grossa serpentina toda aletada, em vez das colmeias que conhecemos hoje.

Darracq 1904 (Jason Vogel)
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Darracq 1904 (Jason Vogel)

No saguão principal do edifício do ACA, dois Panhard-Levassor (1904 e 1908), um Daimler inglês (1914) e um Fiat 40HP (1908) chamam a atenção pela imponência de suas carrocerias. Parecem saídos de uma antiga fotografia da Avenida Central (hoje Rio Branco), no Rio.

Ao lado dos gigantes europeus, o Cadillac Modelo B (1904) fica apequenado. Este foi o segundo modelo produzido pela marca de Detroit. Na época, os Cadillac ainda eram equipados com um singelo motor monocilíndrico de 1.609 cv e 9 cv.

A Automobiles Peugeot também fazia modelos de um cilindro. Eram os Type 69 Bébé, capazes de alcançar a espantosa máxima de 40 km/h. Um detalhe é que, na época, a marca francesa estava dividida: a Automobiles Peugeot pertencia a Armand Peugeot; enquanto a Peugeot Frères, que fabricava os carros Lion-Peugeot, pertencia a Eugène Peugeot, primo de Armand. Somente em 1910 (após a morte de Eugène) é que a família se reconciliou, voltando a se reunir na mesma companhia. O exemplar do museu é um Bébé runabout de 1907.

Bonequinha

Entre  os exotismos automobilísticos há no museu um Wanderer W1 Puppchen (“bonequinha”), de 1911, com carroceria estreitinha de dois lugares em tandem (um atrás do outro). O carro tem apenas 1,08 m de comprimento e pesa 475 kg. A alemã Wanderer se tornaria mais conhecida nos anos 30, como uma das quatro argolas que formavam o logotipo da Auto Union.

Uma marca britânica hoje esquecida é a Swift, que teve suas origens em uma companhia de máquinas de costura, depois transformada em fábrica de motocicletas. Seu logotipo era um trevo preto do naipe de paus. O Swift do museu foi fabricado em 1908, tem carroceria de dois lugares e motor de dois cilindros. Leve e com 10 cv, devia ser bem swift (“veloz”) para a época.

A indústria automobilística argentina é bem mais antiga que a nossa e teve uma infinidade de marcas locais, com produção mais ou menos artesanal. A primeira entre todas foi a Anasagasti, que produziu aproximadamente 50 carros entre 1912 e 1914. No museu do ACA, contudo, não há nenhum Anasagasti para contar história (se quiser ver um, vá ao Museo Nacional de Aeronáutica, em Morón, a 30 km do centro de Buenos Aires).

Yruam 1927 (Jason Vogel) (2)
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Yruam 1927 (Jason Vogel)

Em compensação, o museu do ACA tem o Yruam, protótipo construído entre 1927 e 1928 pelo engenheiro Emmanuel José Maury. Sob uma pequena carroceria cupê, o carro tem uma ergonomia estranha, motor de oito cilindros em linha e câmbio de cinco velocidades, algo avançadíssimo para a época. Em tempo: Yruam é “Maury” ao revés.

Ferrari e Brabham

O acervo tem também carros de competição, com destaque máximo para a Ferrari 166 F2, de 1949. Esses monopostos foram projetados para a Fórmula 2 europeia da época (antes da criação do campeonato mundial de Fórmula 1). O regulamento previa a cilindrada máxima de 2 litros para os motores aspirados. Nessa configuração, o V12 da Ferrari 166 F2 (projetado por Gioacchino Colombo) rendia 230 cv. Foi esse modelo que tornou o argentino Juan Manuel Fangio famoso na Europa, antes mesmo de sua estreia na F1.

Levados à Argentina, esses carros de 750 quilos ganharam compressor mecânico Roots e tiveram sua potência aumentada para 310 cv, com velocidade máxima acima de 300 km/h, para participar da Formula Libre - uma categoria sul-americana tão forte que atraía a Scuderia Ferrari, com pilotos italianos como Luigi Villoresi e Alberto Ascari. Os maiores destaques eram os argentinos Fangio e José Froilán González, que já despontavam na Europa com monopostos pintados de azul celeste e amarelo, as cores oficiais de seu país.

Juan Domingo Perón, então presidente da Argentina, e o ACA, por meio de uma equipe, davam largo suporte às competições automobilísticas e aos pilotos locais. Também havia corridas da Formula Libre em São Paulo (Interlagos), no Rio (na Gávea e na Quinta da Boa Vista) e no Uruguai (Piriápolis).

Nos anos 80, duas dessas Ferrari 166 FL estavam abandonadas. Uma delas foi vendida ao britânico caçador de raridades Colin Crabbe e hoje corre em provas de clássicos na Europa, ainda pintada de azul e amarelo. O dinheiro apurado na venda foi usado na restauração da unidade que ficou na Argentina e hoje pode ser vista no museu do ACA.

Em 1969, o ACA decidiu incentivar a ida de uma nova geração de pilotos argentinos às pistas europeias e adquiriu dois Brabham BT30 para que os jovens Carlos Reutemann e Benedicto Caldarella participassem de provas de Fórmula 2. Em 1971, foi comprado mais um Brabham, o BT36. Todos tinham motor Ford Cosworth FVA, de quatro cilindros,16 válvulas e 1,6 litro, com potência na casa dos 260/270 cv. A iniciativa deu resultado: Reutemann chegou à Fórmula 1, onde teve 12 vitórias ao longo de 11 temporadas (1972-1982). Hoje, tanto o BT30 quanto o BT36 estão no museu.

No acervo em exibição no dia de nossa visita havia também dois baquet, carros abertos com dois lugares, extremamente aliviados para competições: um Renault 1908 e um Hudson Super Six 1924, com carroceria de alumínio.

Veículos de serviço

Em um museu de automóvel clube não poderiam faltar equipamentos dos postos de combustíveis do ACA, placas rodoviárias de sinalização (que eram instaladas pelo clube) e, claro, veículos de serviço. Na sala de exposições temos uma motocicleta Peugeot P55 com sidecar, de 1950, e um curioso triciclo Franbretta, de 1975. Ambos eram usados nos serviços rápidos de auxílio mecânico.

Nos anos 60, a empresa Franco Hermanos, de Córdoba, fornecia componentes para indústrias de motocicletas na Argentina. Na época, a Lambretta era fabricada na Argentina pela companhia Siam Di Tella e recebia o nome Siambretta. Quando a Siam parou de fazer a Lambretta, a Franco Hnos. comprou o ferramental e assumiu a produção. Além dos modelos de duas rodas, fazia triciclos em versões picape e furgão. Eram os motocargas Franbretta.

Fora do salão, mas a uma janela de distância, há ainda dois antigos reboques do ACA: um robusto International de quatro cilindros, ano 1928, e uma IKA Baqueano, de 1961. IKA é sigla de Industrias Kaiser Argentina, que produzia a linha Willys no país hermano. Enquanto no Brasil as Rural e picapes Jeep tiveram suas linhas modernizadas em 1960, as versões argentinas mantiveram o estilo original americano por mais alguns anos. Além do mecanismo do guincho, o exemplar preservado pelo ACA traz uma bossa da época: faróis de Kaiser Carabela, o sedã de luxo da IKA.

Ao fim da visita e já com certa inveja dos hermanos, ficamos pensando em como seria lindo se o histórico prédio do Automovel Club do Brasil, na Rua do Passeio, Centro do Rio, abrigasse um museu dos transportes. Em vez disso, o centenário edifício está sendo restaurado, após décadas de abandono, para virar um… museu do futebol!

Envie seu flagra! flagra@motor1.com