Nos anos 50, as estradas brasileiras eram ainda mais precárias que as de hoje: faltava asfalto e sobrava lama. Não é de se estranhar que a norte-americana Willys-Overland tenha se interessado em abrir uma fábrica por aqui. Vivíamos os tempos de industrialização entre o fim do segundo governo de Getúlio Vargas e o início dos anos JK.
A Willys era uma fábrica independente que, durante a Segunda Guerra, ganhou força e fama produzindo o Jeep militar. Com o fim do conflito mundial, o bravo 4x4 passou a ser vendido também a civis. Era considerado equipamento agrícola.
O Jeepster chegou a ser exportado para o Brasil nos anos 50
Importada - Willys Station Wagon de 1947
Ainda nos anos 40, a Willys começou a diversificar sua linha nos EUA, criando versões mais sociais do Jeep. Uma era o Jeepster (conversível que nunca seria feito no Brasil), outra era a Station Wagon - que pode ser considerada a mãe de todos os SUVs.
Lançada em 1946, a Willys Station Wagon tinha chassi com longarinas separado da carroceria, eixos rígidos e feixes de molas. Seu motor de estreia era o modestíssimo L-134 Go-Devil, de quatro cilindros, do Jeep militar e de seu irmão civil, o CJ-2A. Uma versão 4x4 da Station Wagon foi lançada em 1949 e logo o modelo passou a ser equipado com um motor de seis cilindros, ainda do tipo “cabeça chata” (ou seja: com as válvulas no bloco).
Importada - Willys Station Wagon de 1947, o primeiro modelo
A traseira da Willys Station Wagon com suas duas janelinhas
Mas era na carroceria de aço estampado e nas linhas quadradas que estava a grande revolução: até então, todos os utilitários e caminhonetes fabricados nos Estados Unidos usavam madeira em sua construção. E eis que a Willys Station Wagon mudou esse quadro com uma estrutura inteirinha de metal. Cupins, nunca mais! O curioso é que, nos primeiros anos de produção, a pintura do corpo da carroceria em marrom e bege poderia sugerir que a Willys Station Wagon era uma woodie.
Em 1947, os Willys começaram a desembarcar no Brasil trazidos pela Gastal. Era uma empresa com sede no Rio de Janeiro, que chegou a ter uma pequena linha de montagem no município fluminense de Nova Iguaçu. Logo depois, os Jeep passaram a ser montados também em São Paulo, pela Jeepsa (1948) e sua sucessora Agromotor (1949).
Um anuncio americano de 1949, com foto feita no Rio
As vendas de Willys por aqui prosperaram tanto que, em 1952, a companhia decidiu que era hora de construir uma fábrica de verdade em São Bernardo do Campo, São Paulo.
Assim, a Willys se antecipou: a partir de 1º de julho de 1953, a importação de veículos já montados seria proibida pelo governo Getulio Vargas, como estratégia para fomentar o surgimento da indústria automobilística brasileira.
O primeiro modelo da marca produzido nas novas instalações foi o CJ-3B, em março de 1954 e com 35% de seus componentes feitos aqui. A essa altura, a Willys-Overland já passara a fazer parte do grupo Kaiser-Frazer nos EUA - e as operações no Brasil, comandadas por Hickman Price Jr., tinham grande participação acionária de investidores brasileiros (como a família Aranha, dona da Gastal).
A primeira Rural nacional, de 1958, ainda tinha a frente bicudinha e para-brisa bipartido
O Jeep evoluiu rapidamente: em outubro de 1955, a Willys-Overland já anunciava o início da produção do modelo CJ-5 no Brasil, com 40% de nacionalização. E a Station Wagon, que até então era importada, passou a ser fabricada no Brasil em 1958, sendo rebatizada de Rural Willys.
Nesses primeiros tempos da produção nacional, o modelo manteve o desenho original dos EUA (com a “frente bicuda”) mas já recebeu o motor Hurricane BF-161 a gasolina, de seis cilindros em linha e 2.638 cm³. Fundido no Brasil, tinha o chamado cabeçote em “F” (ou seja: com as válvulas de admissão na cabeça e as de admissão no bloco) e rendia 90 cv brutos - era o mesmo motor do Jeep CJ-5. O câmbio era de três marchas, com caixa de transferência para tração 4x4.
O exemplar da foto ainda é um Willys legítimo
A Rural foi muito usada como carro de reportagem até os anos 70
Havia eixos rígidos na dianteira e na traseira. Além de ser usado no campo, o utilitário Willys também era uma visão comum nas grandes cidades e muito aproveitado como carro de frota. Era, por exemplo, o carro de reportagem de nove entre dez jornais brasileiros.
Mas havia uma grande mudança a caminho: em novembro de 1959, a Rural foi mostrada com cara nova - e já como “modelo 1960”. Era a primeira vez que um automóvel ganhava alterações visuais exclusivas para a produção no Brasil, e quem comandou a cirurgia plástica foi o designer americano Brooks Stevens.
Brasileiras - a Rural 1960 e sua antecessora bicudinha
Stevens era o homem certo para renovar a Rural brasileira: ele prestava serviços à Willys desde os anos 40 e havia trabalhado no projeto da Station Wagon original.
O designer fez milagres para lançar a Rural-Willys de 1960. Sem mexer nos painéis laterais de 1947, ele deu uma bela modernizada no modelo fabricado em São Bernardo do Campo.
A Pick-up Jeep dos anos 60
Pick-up Jeep era pau pra toda obra
A dianteira ganhou linhas específicas para o mercado brasileiro (como faróis embutidos nos para-lamas e uma grade que lembrava as colunas de Niemeyer em Brasília), o para-brisa passou a ser inteiriço e o mesmo aconteceu com o vidro traseiro. Isso sem esquecer da Pick-Up Jeep, uma Rural com caçamba que também passou a ser feita aqui.
O Willys Saci seria o Jeepster brasileiro - foi mostrado em 1960 mas nunca entrou em linha
No I Salão do Automóvel de São Paulo, em 1960, a Willys-Overland mostrou o carro-conceito Saci, uma espécie de Rural conversível. Seria a versão brasileira do Jeepster norte-americano, mas o projeto foi abortado. Quem entrou em produção mesmo foi a Rural 4x2 - criada para quem não precisava enfrentar trilhas difíceis, tinha alavanca do câmbio na coluna de direção. Para aumentar o conforto, foi lançada em 1964 a versão 4x2 com suspensão independente na dianteira e molas helicoidais (em vez do eixo rígido com feixes de molas).
A Ford rebatizou a Pick-up Jeep como F-75
Quando a Ford comprou a Willys-Overland do Brasil, em 1967, as linhas Jeep e Rural foram mantidas em produção. A Rural chegou a ganhar um motor de 3 litros e dois carburadores, que rendia 140 cv. Havia também a versão de quatro marchas.
Com a crise do petróleo, a Ford passou a equipar a Rural com o moderno motor OHC de quatro cilindros e 2,3 litros do Maverick. Mas já era tarde e o projeto da Rural tinha quase 30 anos. A produção em São Bernardo do Campo foi encerrada em 1977.
Quem ganhou maior sobrevida foi a Pick-up Jeep: rebatizada de F-75 pela Ford, continuou a ser fabricada no Brasil até 1982.
Lá fora, o utilitário continuou com sua “cara antiga” (pré-1959) por muitos anos. Nos EUA, a Willys Station Wagon foi produzida até 1965, quando deu lugar ao Jeep Wagoneer, outra criação de Brooks Stevens. De evolução em evolução, chegou-se ao Grand Cherokee.
Versão japonesa - o Jeep Mitsubishi J37. Modelo durou até 1983
Versão japonesa - o Jeep Mitsubishi J37. Daqui nasceu a Pajero
No Japão, a velha Willys Station Wagon foi fabricada sob licença pela Mitsubishi e com a frente do Jeep CJ-3B, vulgo “Cara de Cavalo”. O primeiro modelo nipônico foi o J11, com carroceria de duas portas e entre eixos igual ao da nossa Rural (2,65 m). Durou de 1956 a 1961. Depois veio uma versão de quatro portas inexistente em outros países. Batizada de Jeep J37, foi produzida de 1962 até 1983 e pode ser considerada a origem dos atuais Pajero.
IKA Estanciera, a Rural argentina
Em 1966, a IKA Estanciera argentina foi modernizada com a carroceria brasileira, mas a grade era diferente
Já a Willys Station Wagon produzida pelas Industrias Kaiser Argentina recebia o nome de IKA Estanciera. Lançada em 1957, manteve a aparência original da versão estadunidense até 1966, quando ganhou carroceria semelhante à da Rural de São Bernardo do Campo. Até hoje, esse modelo é chamado pelos hermanos de “Estanciera brasileña”. A produção foi até 1970.
Rural dos anos 60 em seu ambiente
Para os padrões de hoje, a Rural é um carro beberrão. Faz cerca de 6,5 km/l na estrada, na versão com motor Willys 2.600. Já a direção é dada a passarinhar e o motorista vai executando o trabalho de “corrigir a rota” seguidamente.
Mas o que importa em um veículo desse tipo é a resistência. Desde que se lubrifique sempre os mais de 30 pinos de graxa, a suspensão dura para sempre.
Inteiras ou alquebradas, originais ou modificadas, muitas Rural continuam prestando serviços em cidades do interior ou fazendo a alegria dos jipeiros.
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