O carro bioelétrico – a mais simpática e precisa definição para o carro híbrido a etanol, uma exclusividade brasileira até o momento – é a mais promissora aposta da indústria automotiva instalada no País e está por trás de parte considerável de investimentos de fabricantes, que devem somar R$ 117 bilhões até a virada da próxima década, segundo calcula o MDIC, Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.
Ao mesmo tempo em que reduzem emissões – até mais do que elétricos a depender do cálculo – os híbridos podem garantir maiores ganhos econômicos ao Brasil com diferencial de faturamento da ordem de R$ 7,4 trilhões para a indústria ao longo dos próximos trinta anos, caso esta seja a tecnologia preferencial adotada pela indústria automotiva no País.
É o que relata o recém-divulgado estudo Trajetórias Tecnológicas Mais Eficientes para a Descarbonização da Mobilidade, elaborado pela LCA Consultores e MTempo Capital, a pedido do MBCB, Acordo de Cooperação Mobilidade de Baixo Carbono para o Brasil, uma coalizão de 25 entidades e empresas – incluindo os maiores fabricantes de veículos do País – que tem o objetivo de propor ações e políticas para a descarbonização dos meios de transporte no País, sem eleger tecnologias específicas.
O trabalho foi apresentado pela primeira vez na semana passada, no seminário Descarbonização - Os Caminhos para a Mobilidade de Baixo Carbono no Brasil, organizado pelo Grupo Esfera e pelo MBCB em Brasília, DF, e prestigiado pela principais autoridades do Executivo ligadas ao desenvolvimento econômico.
O estudo colocou em números as consequências socioeconômicas de se eleger uma ou outra rota tecnológica de descarbonização. A conclusão é que modelos a bateria impõem perdas à cadeia produtiva com o encerramento da produção de motores a combustão e seus componentes, além do fechamento de postos de trabalho. Ao contrário, os híbridos trazem ganhos financeiros porque acrescentam sistemas e componentes novos ao veículo sem descartar nenhuma fábrica já instalada.
Com maior foco na produção dos veículos bioelétricos, adicionando componentes aos modelos a combustão em produção, o faturamento das empresas envolvidas na cadeia aumentaria quase R$ 2,4 trilhões no período de três décadas. Na mesma comparação a convergência ao 100% elétricos reduziria as receitas em R$ 5 trilhões.
A soma do que se deixa de ganhar com o que se ganha a mais perfaz os incríveis R$ 7,4 trilhões de vantagem a favor dos híbridos.
O cálculo também leva em conta o fato de o Brasil não produzir baterias para carros elétricos e muito menos suas células, cuja produção está concentrada na China e não há previsão de nacionalização no horizonte visível, o que levaria o Pais a importar os componentes e perder faturamento nacional na hipótese de convergir sua indústria à fabricação de modelos 100% elétricos.
O mesmo estudo calcula que os bioelétricos acrescentariam R$ 878 bilhões ao PIB brasileiro enquanto os elétricos retirariam R$ 1,9 trilhão, a arrecadação de impostos aumentaria R$ 318 bilhões com os híbridos e cairia R$ 679 bilhões com os carros a bateria, e a correlação com geração de empregos é de mais 1 milhão de vagas para produzir modelos a combustão eletrificados contra o fechamento de 597 mil postos de trabalho na hipótese de se investir somente nos elétricos puros, o que torna a transição energética com híbridos também socialmente mais justa.
Portanto, se a eficiência ambiental do carro bioelétrico já fazia muito sentido a indústria ganhou um argumento incontestável para apostar nos híbridos: ganhos trilionários de faturamento contra perdas trilionárias na convergência para os elétricos puros.
Segundo o economista Luciano Coutinho, ex-presidente do BNDES e sócio da MTempo, os fabricantes de veículos já tomaram a decisão: “Para fazer o estudo nós conversamos com diversos fabricantes e perguntamos para onde iriam os investimentos em descarbonização e quase todos responderam que vão seguir o caminho dos híbridos flex. Por isto este é o cenário mais provável que traçamos”.
Com isto o governo ganha um importante aliado à sua política de reindustrialização do País, ou neoindustrialização, convergindo a necessária rota da eletrificação com a especialidade brasileira de produzir biocombustíveis, o que certamente manterá a indústria automotiva mais ocupada no Brasil e um tanto quanto mais descolada das decisões das matrizes empenhadas em produzir só custosos elétricos puros – até porque não têm a mesma disponibilidade de abastecimento de etanol.
Para além dos ganhos econômicos o veículo bioelétrico faz mais sentido do que elétricos em um país como o Brasil, que tem etanol largamente produzido e distribuído há mais de quarenta anos, tem mais de 80% da frota de veículos leves equipada como motores flex bicombustível gasolina-etanol, além de trabalhar em outras fontes de etanol em adição à cana, como milho, e outros biocombustíveis como biodiesel, HVO, biometano e hidrogênio verde.
Todos estes biocombustíveis emitem CO2 quando utilizados em um veículo, mas como vêm de fontes naturais – e não fósseis como os hidrocarbonetos derivados do petróleo – quase todo o gás carbônico de efeito estufa volta à sua origem, reabsorvido pelas próprias plantações de cana ou milho, por exemplo.
Aliado a um sistema de propulsão híbrido com motor elétrico auxiliar o etanol ganha mais eficiência energética e supera o elétrico puro a bateria na redução de emissões de CO2 – quando se faz a conta do berço à roda, que compreende, além do uso do veículo em si [a parte do tanque à roda], também todas as emissões acumuladas desde a mineração de insumos, processos de fabricação dos componentes e montagem dos carros, produção e distribuição dos combustíveis.
Levando em consideração todo este ciclo, segundo dados apurados no estudo da LCA e MTempo, um modelo bioelétrico, híbrido utilizando só etanol, emite 77,5 gramas de CO2 por quilômetro rodado, enquanto no elétrico a emissão sobe para 104,8 gCO2/km – isto sendo alimentado com a matriz energética mais limpa do Brasil, onde 55% da eletricidade gerada vêm de usinas hidrelétricas e 35% de captação eólica e solar, em contrapartida à Europa, por exemplo, que gera sua energia predominantemente de termoelétricas que emitem mais CO2.
Este mesmo veículo equipado só com motor a combustão emite 120,9 gCO2/km usando 100% de etanol hidratado e 269,3 gCO2/km quando usa gasolina pura – diferente da distribuída no Brasil, misturada com 27% de etanol anidro.
Com base nos achados do recente estudo e na escolha dos fabricantes de apostar na produção de veículos híbridos flex os consultores envolvidos estimam que o uso de etanol na matriz energética nacional de transportes deverá dobrar de atuais 30% para mais de 60% até 2050.
Isto ocorrerá sem nenhuma competição com a produção de alimentos nem aumento de desmatamento, pois atualmente no País já é possível dobrar a produção de etanol para mais de 60 bilhões de litros por ano com o aproveitamento de áreas degradadas e aumento da eficiência do processamento da cana, especialmente com o etanol de segunda geração, produzido a partir do bagaço e outros resíduos agrícolas.
Também existe grande potencial de crescimento do etanol de milho, que já responde por quase 30% da produção nacional, também sem competição com alimentos, pois utiliza-se somente o amido do grão para destilação de álcool, a fibra, proteína e óleo restantes do processamento pode ser direcionada à produção de ração animal.
A conclusão é que o País tem condições de descarbonizar as emissões de sua frota de veículos de forma mais barata, rápida e socialmente mais justa do que qualquer outro País, mas para isto é preciso não perder mais esta oportunidade.
[O resumo executivo do estudo Trajetórias Tecnológicas mais eficientes para a Descarbonização da Mobilidade pode ser baixado no site]
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo, e editor da revista AutoData. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
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