Quando se fala nos primeiros automóveis do Brasil, todo mundo cita os exemplares importados, nos anos 1890, pela família Santos Dumont (em São Paulo) e pelo jornalista José do Patrocínio (no Rio). Mas, duas décadas antes, desembarcaram por aqui pesados veículos movidos a vapor, dotados de sistema de direção e rodas calçadas com borracha. Antepassados dos caminhões e ônibus, esses dinossauros rodoviários se chamavam, oficialmente, Thomson Road Steamers - mas logo ganharam o apelido de "carros de borracha" por aqui, por causa do material usado em suas rodas.
Vistos como solução para o transporte de cargas e passageiros em localidades não alcançadas por ferrovias, os Thomson Road Steamers tiveram uma breve popularidade, especialmente no Nordeste e no Norte do país, mas rapidamente sucumbiram às péssimas condições das poucas estradas de rodagem existentes na época. A burocracia, os favorecimentos e a dependência do Estado também tiveram seu papel na extinção dos carros de borracha no Brasil. Sua passagem por aqui, porém, ficou registrada nos jornais da época.
O fardier de Cugnot, na França de 1770 - o primeiro automóvel da História
Entre 1769 e 1771, o militar francês Nicolas-Joseph Cugnot projetou e construiu o seu fardier à vapeur, um trator a vapor que teve a histórica importância de ser o primeiro veículo do mundo a mover-se por seus próprios meios - as locomotivas só seriam inventadas mais de 30 anos depois! Apesar de ter sido projetado para puxar peças de artilharia, o Fardier de Cugnot é considerado o primeiro automóvel do mundo - começava uma revolução...
Ao longo das décadas, as "locomotivas rodoviárias" e enormes ônibus movidos a vapor se tornaram uma visão relativamente comum tanto nos centros urbanos quanto em áreas rurais da Europa, especialmente na Inglaterra e na França. Havia, contudo, grandes dificuldades práticas em sua aplicação nas precárias estradas da época.
A aderência ao chão de terra batida, areia ou lama era ruim - os pneus ainda não haviam sido inventados e as rodas tocavam o chão sem intermediários... Para manterem tração sobre pisos não-pavimentados ou de macadame, essas rodas tinham, muitas vezes, dentes metálicos pontiagudos que acabavam por arruinar as estradas. Eram tantos solavancos nos buracos que as molas, não raro, se partiam. Por fim, os freios eram extremamente precários e de difícil manejo.
Foi aí que surgiu um criativo escocês chamado Robert William Thomson (1822–1873) responsável por importantes invenções como os pneus (em 1847, ou 45 anos antes de John Dunlop requerer sua patente) e o aperfeiçoamento das canetas-tinteiro (em 1849).
O Thomson Road Steamer de 1870 e suas rodas cobertas com borracha e chapas de aço
Depois de uns anos trabalhando com mecanismos a vapor para engenhos de açúcar em Java, na atual Indonésia, Thomson voltou à Escócia e encontrou um jeito de que as locomotivas rodoviárias não danificassem mais as estradas. O engenheiro teve a feliz ideia de aplicar anéis de borracha vulcanizada sobre as rodas.
As rodas, em si, eram de ferro fundido, com vários buracos. Sobre cada roda ia um anel feito de borracha importada da índia - e essa borracha era mantida no lugar por uma espécie de corrente, com chapinhas de aço retangulares protegendo a banda de rodagem. Havia uma certa folga entre todos esses elementos, o que, juntamente com a flexibilidade da borracha natural, ajudava a amortecer os choques, distribuir a pressão sobre o piso, além de manter tração tanto no solo duro quanto na lama.
É curioso pensar que o inventor Thomson não instalou seus pneus inflados com ar nas locomotivas rodoviárias. Ocorre que, na época, não havia tecnologia que desse aos pneus resistência suficiente para a aplicação em veículos tão pesados - e o jeito foi mesmo usar os aros de borracha guarnecidos com placas de metal que evitavam cortes provocados pelas pedras. Somente quatro décadas mais tarde, Dunlop começaria a produzir pneus comercialmente, mas para leves bicicletas...
Vista em corte de uma locomotiva rodoviária de três rodas
Graças à solução das rodas cobertas com borracha, os Thomson Road Steamers ganharam atenção nos dois lados do Atlântico. Tinham motores de dois cilindros com potência que variava de 6 cv a 25 cv.
Por incrível que pareça, essas locomotivas rodoviárias de três rodas eram compactas (especialmente se comparadas às usadas em ferrovias). As menores mediam 3,65 metros de comprimento, enquanto as maiores chegavam aos 5,18 metros. Já o peso era alto: de 5 a 13 toneladas, dependendo do modelo, incluindo a água e o carvão usado como combustível.
Depósito de carvão, caldeira, motor, tanque de água e borracha nas rodas
Fato é que esses tataravós dos atuais caminhões e ônibus podiam alcançar 25 km/h quando vazios - um deles chegou a ser cronometrado a incríveis 40 km/h, numa prova de velocidade máxima. O normal, contudo, era que mantivessem velocidades de cruzeiro entre 10 e 20 km/h, levando carga. Assim, em marcha média, o motor girava a 220 rpm.
Mesmo os menores modelos conseguiam tracionar vagões com 10 toneladas e subir rampas de até 35 graus. Usado como ônibus, o veículo transportava até 65 passageiros em seu reboque.
Mas o principal era a direção. Um relatório militar britânico de 1870 foi poético ao descrever o diâmetro de giro: "um pequeno círculo como a cavalgada de um cavalo no picadeiro de um circo". Sua única roda dianteira podia ser comandada com "maravilhosa submissão às mãos do condutor", mesmo em zigue-zague.
Locomotiva rodoviária equipada com carro de passageiros
Para operar um veículo desses eram necessárias três pessoas: um tripulante cuidava do volante, outro alimentava a caldeira e havia um sujeito só para acionar os freios. No Reino Unido, era preciso ainda ter um quarto integrante - um menino para carregar uma bandeira vermelha, alertando aos passantes que havia um veículo a motor na estrada (eram os tempos da Lei da Bandeira Vermelha, que durou de 1865 a 1896, praticamente inviabilizando o uso do automóvel na Grã-Bretanha).
O depósito de carvão era suficiente para um dia inteiro de trabalho, mas o tanque de água precisava ser enchido a cada 4 horas de serviço. O relatório militar britânico via vantagens nisso: "Ao contrário dos cavalos, o Thomson Road Steamer não fica cansado. Tampouco precisa ser alimentado quando não está trabalhando". Segundo relatos da época, os cavalos que passavam pela máquina não se assustavam. Demonstravam mais admiração do que medo.
Apresentados em 1868 e produzidos pela T.M. Tennant & Co, em Edimburgo, Escócia, os Thomson Road Steamers logo começaram a ser usados na Inglaterra, na França, na Itália, nos Estados Unidos e na Índia. E não demoraram a despertar interesse em um longínquo país da América do Sul.
Uso como ônibus em Edimburgo, onde ficava a fábrica
Os Thomson Road Steamers pareciam o meio de transporte ideal para um país como o Brasil, que mal ingressara na era das ferrovias. Eram, afinal, bem menores e mais baratos do que as composições de estradas de ferro e dispensavam grandes investimentos com a implantação de trilhos. Em teoria, seriam perfeitos para estabelecer contato entre lugarejos pouco populosos e cidades maiores, já servidas por trens ou por transporte fluvial e marítimo. Atendendo a uma consulta do Ministério da Agricultura, o Instituto Politécnico Brasileiro recomendou vivamente a novidade: "(...) não podemos deixar de desejar que seu uso se generalize o mais possível nas estradas existentes (...)".
Modelos com rodas lisas tinham sérios problemas de aderência e tração
Um decreto assinado pelo imperador D. Pedro II, em 24 de agosto de 1870, autorizou a importação e o uso das primeiras máquinas rodoviárias Thomson no país. Mais do que isso, o governo estabeleceu concessões de modo a dar exclusividade de operação desses veículos nas diferentes províncias (hoje estados) do Brasil.
Em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, por exemplo, o privilégio foi concedido aos engenheiros Paulo José de Oliveira e Joaquim Pires Carneiro Monteiro. Em setembro do mesmo ano, Paulo José de Oliveira, agora com outro sócio, Francisco Antonio Pimenta Bueno, ganhou a permissão de operar os veículos Thomson em São Paulo por 15 anos. No Rio de Janeiro e em Minas Gerais, a exclusividade foi dada ao engenheiro João Martins da Silva Coutinho.
O decreto imperial de 1870 abrindo concessões para o uso das Thomson no Brasil
A operação dos carros de borracha era liberada juntamente com concessões para a construção de primitivas rodovias, como da cidade gaúcha de Santa Maria até o Rio Jacuí (170 km), ou de Mundo Novo a São Leopoldo (60 km), também no Rio Grande do Sul. Na época, o que havia eram caminhos e trilhas para mulas e juntas de bois.
Em Goiás, já se falava em estabelecer uma ligação entre a antiga capital (hoje conhecida como Goiás Velho) e a divisa de Minas Gerais. Não raro, os interessados em criar linhas de transporte a vapor sem trilhos recebiam financiamentos do governo para abrir as estradas, pagos em prestações ao longo da obra.
Alguns particulares mandaram buscar exemplares do Thomson Road Steamer na Inglaterra, sem saber dos privilégios concedidos pelo imperador. Resultado: três carros de borracha chegaram a Fortaleza no início de 1871, mas não puderam ser usados por embargo do concessionário local.
Jornal noticia os testes do Dr. Pereira Rocha
Na Bahia, o privilégio da operação coube ao jurista e empresário Pereira Rocha (1815-1882), pioneiro da implantação da água encanada em Salvador. Segundo o pesquisador Jonildo da Silva Bacelar, o primeiro Thomson Road Steamer chegou a Salvador nas últimas semanas de abril de 1871, a bordo do vapor inglês Tycho Brahe. O carro de borracha veio acompanhado do mecânico escocês George Johnston.
Em 4 de maio de 1871, o Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, informava que "Em diversas ruas da Bahia foi experimentada pela primeira vez uma das locomotoras que têm de puxar os vagões do sistema Thomson Road Steamer, que pretende introduzir na capital o Dr. Francisco Antonio Pereira Rocha. A experiência parece ter dado resultados satisfatórios".
A notinha sobre esse primeiro passeio automobilístico no Brasil foi publicada sem qualquer destaque, perdida entre dezenas de outras notícias. Uma semana depois, contudo, o mesmo Diário de Notícias trouxe uma coluna que apostava no futuro do veículo a vapor do Dr. Pereira Rocha:
"As experiências feitas atestam que a máquina Thomson tem capacidade para servir de veículo de comunicação não só dentro das ruas da cidade, mas também nos vastos e desertos sertões daqueles desaproveitados municípios do Recôncavo. (...) A incredulidade de uns, os sarcasmos da ignorância e do charlatanismo impávido, a rotina geral teriam bastado para desalentar a outro homem que não fosse dotado da têmpera e da convicção que fazem a fé e a força de um espírito inteligente como o do dr. Rocha."
Para o pesquisador Jonildo Barcelar, tudo indica que foi o próprio Rocha quem dirigiu o veículo nos primeiros testes pelas ladeiras de Salvador, tornando-se assim, o primeiro motorista do Brasil.
Sem carga, os road steamers passavam dos 25 kmh
Em novembro de 1871, contudo, uma nota na imprensa dava conta de que o Dr. Pereira da Rocha já estaria desistindo da ideia de formar uma empresa para operar o transporte rodoviário a vapor. Ele conseguiu subvenção do estado para atuar na região de Alagoinhas até Santo Amaro, mas não teve êxito em atrair sócios com verbas suficientes para melhorar as estradas por onde passariam os Thompson Road Steamers. Os danos ao pavimento eram causados pelas patas dos burros e estreitas rodas das carroças.
"Para conservação dos caminhos, poder-se-á estabelecer um pedágio", previam os jornais da época.
Apesar das dificuldades, o Dr. Pereira da Rocha continuou a demonstrar as 1.001 utilidades das máquinas Thomson, encarando a Ladeira da Conceição da Praia, rumo à parte alta de Salvador. Ao longo de 1871 e 1872, ele demonstrou, em frente ao Farol da Barra e também no Bonfim, que seu carro de borracha podia perfeitamente tracionar um arado. Dizia-se então: "com esse meio poderoso de substituir os braços na lavra nos campos, esse melhoramento deve ser aceito numa época em que se trata de abolir a escravatura nacional".
O jornalista e historiador baiano Manoel Querino (1851-1923) testemunhou os passeios de automóvel do Dr. Pereira da Rocha. No livro "A Bahia de outrora", Querino registrou uma quadrinha popular entre os soteropolitanos dos anos 1870, que comparava o Thomson Road Steamer ao recém-inaugurado Elevador Lacerda: "Havemos de ver dos dois/ O que aperta ou afrouxa/ Do Lacerda o parafuso/ Ou a borracha do Rocha".
Em Belém, o veículo transportava passageiros
Em Belém, mais problemas: ainda em 1870, na Assembleia Provincial do Pará, começou uma guerra entre os operadores de bondes e os empresários Mourão e Gaensly, interessados em importar os "carros com rodas forradas de borracha". O primeiro passo para sua liberação foi provar que o uso desses automóveis pioneiros não traria perigo às ruas e arrabaldes.
Outros fabricantes seguiram a solução de Thomson
Obtido o alvará, o primeiro carro de borracha circulou pelo coração de Belém em 24 de setembro de 1871, bem a tempo das festas de Nazaré. Sua primeira corrida foi entre as estações de Ver-o-Peso e São João, sobre calçamento de macadame - a locomotiva rodoviária Thomson puxava um par de vagões de passageiros com dois andares cada.
Dois anos depois, contudo, a companhia urbana das estradas de ferro de Belém do Pará arrendou a empresa dos carros de borracha e, simplesmente, tirou-os de circulação, aniquilando a concorrência.
Pouco antes de morrer, em 1873, Thomson passou a produção de seus veículos à Robey & Co
Para Pernambuco foram duas locomotoras Thomson de 8 cv, além de dois vagões fechados e duas plataformas abertas para grandes cargas.
Os carros de borracha eram vistos como um meio de transporte econômico para os engenhos e toda sorte de propriedades agrícolas ou industriais. Além disso, suas máquinas a vapor podiam ser utilizadas como motores estacionários para tocar serrarias, beneficiadoras de algodão e mover diversos aparelhos. Nos engenhos, havia a vantagem extra de que o bagaço da cana servia como combustível para as caldeiras.
Mas eis que, após um início promissor, os carros de borracha de Pernambuco foram leiloados em 1874 - segundo o anúncio, "em virtude de não se poder dispor de boas estradas de rodagem nesta província".
A partir dessa época, as referências a esse tipo de veículo desaparecem das páginas dos jornais. Somente uns 20 anos depois é que nossa imprensa voltaria a tratar de automóveis, a essa altura já bem mais leves e evoluídos. Quanto aos pioneiros Thomson Road Steamers, não se sabe da existência de qualquer sobrevivente.
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