Indústria de caminhões é exemplo de evolução, mas renovação precisa avançar
Fabricantes de veículos pesados investiram R$ 5 bilhões para renovar produtos, adotar motorização Euro 6 e introduzir tecnologias
Na última década a indústria de caminhões e seus fornecedores, instalados no Brasil há mais de 65 anos, vêm dando exemplos de evolução em paridade com o mundo desenvolvido, com investimentos e adoção de tecnologias em passo mais acelerado do que os fabricantes de veículos leves.
O mais importante é que todo este avanço tecnológico dos pesados tem importante parcela de contribuição da engenharia nacional, o que retém talentos, recursos e desenvolvimento dentro do País.
Na recente Fenatran – maior feira do setor de transporte de cargas e logística da América Latina, encerrada na semana passada – foi possível enxergar sem sombras as evoluções dos produtos nos estandes de seis fabricantes que têm robustas operações industriais no País.
No evento DAF, Iveco, Mercedes-Benz, Scania, Volvo e Volkswagen Caminhões e Ônibus mostraram os resultados de investimentos somados na casa de R$ 5 bilhões que foram direcionados à renovação de suas linhas de produtos nos últimos dois a três anos.
Euro 6, gás, elétricos, autônomos e mais
Com os investimentos, todos os caminhões expostos na Fenatran deste ano incorporaram algumas das mais avançadas tecnologias disponíveis, a começar pela adoção de motores diesel Euro 6, de 8% a 15% mais econômicos do que os antecessores Euro 5, obrigatórios para atender a nova fase do programa brasileiro de redução de emissões para veículos pesados, o Proconve P8, em vigor a partir de janeiro próximo.
Não foi só uma simples troca de motores: as montadoras aproveitaram a obrigação de ter de mudar a motorização para também incluir uma série de modernos sistemas de navegação, segurança e assistência à condução – em uma prova inconteste que a legislação atualizada é a mais importante mola propulsora do desenvolvimento tecnológico de um país.
Para além dos caminhões diesel Euro 6 – já prontos para rodar também com HVO, combustível renovável, à base de óleo vegetal hidrogenado, já produzido no País pela Petrobras –, o que por si só já reduz emissões de poluentes e CO2, também estiveram presentes na Fenatran outras alternativas de propulsão mais limpa.
Modelos Iveco e Scania a gás natural – ou biometano extraído de resíduos orgânicos, como lixo – já estão em produção no País e disponíveis para encomendas.
Para reforçar o discurso pró-descarbonização do transporte, quase todos os fabricantes trouxeram ao menos um veículo elétrico para exibir ao público da Fenatran – a exceção foi a Scania, que já tem esta opção na Europa, mas aqui prefere ser mais pragmática com sua aposta no gás e caminhões mais econômicos, sem gastar recursos com exposição de tecnologias ainda imaturas e sem demanda suficiente no Brasil.
Enquanto a maioria dos fabricantes trouxe caminhões elétricos importados somente para exibição, dizendo esperar a demanda acontecer para viabilizar a produção nacional – o que deve demorar bastante – a VWCO seguiu exibindo a flexibilidade e criatividade de sua engenharia brasileira como a primeira montadora nacional – e até agora a única – a projetar e produzir comercialmente um veículo elétrico no País, o e-Delivery, caminhão para entregas urbanas apresentado pela terceira vez na Fenatran, mas agora produzido e lançado em escala comercial, já em utilização por alguns transportadores aqui.
Outro exemplo de eletrificação pragmática vem de uma corporação multinacional brasileira, as Empresas Randon, que trouxe à Fenatran uma carreta com placas solares para suprir a energia de composições frigorificadas e alimentar um eixo auxiliar elétrico, o e-Sys, desenvolvido pela Suspensys, uma das divisões de autopeças do grupo. Para economizar combustível, e-Sys pode equipar tanto carretas como caminhões diesel, que podem ser transformados em híbridos.
Em outra frente tecnológica, os fabricantes no Brasil já tinham desenvolvido caminhões com direção autônoma para aplicações específicas na colheita de cana-de-açúcar, mas a engenharia brasileira da Mercedes-Benz, em conjunto com a Lume Robotics, deu um passo além: exibiu em seu estande o primeiro caminhão autônomo nível 4, um Atego que sequer precisa de um motorista a bordo, para operações internas em armazéns logísticos de um cliente, a Ypê.
Importante notar que quase todas as tecnologias apresentadas para caminhões no Brasil são bastante pragmáticas, estão prontas – ou quase – para uso agora e foram desenvolvidas aqui mesmo, com engenharia nacional.
Relevância internacional
Essa evolução acontece também por motivo bastante pragmático: o modal rodoviário representa mais de 60% do transporte de cargas – inclusive as centenas de milhões de toneladas de grãos produzidas a cada safra viajam em caminhões –, o que faz do Brasil um dos cinco maiores mercados de veículos comerciais do mundo, e primeiro ou segundo para boa parte das marcas que atuam no País.
Isso sem contar as exportações que nos bons anos, no caso das maiores fabricantes, consomem de 20% a 30% da produção nacional de caminhões e ônibus.
Com legislação de emissões atualizada, clientes exigentes e mercado aquecido, na casa dos 130 mil caminhões este ano e potencial para alcançar 170 mil/ano, a indústria de caminhões instalada no Brasil tem maior relevância internacional e seus produtos ganham atualizações mais rápidas do que ocorre com os automóveis por aqui.
Extensões continentais, estradas irregulares – para não dizer sofríveis – e topografia muito variada são características do País que também impulsionam o desenvolvimento local de caminhões tão robustos quanto tecnológicos e econômicos com combustível e manutenção.
Também é fator de impulso tecnológico o fato de que cerca de metade dos caminhões vendidos no País são modelos extrapesados, que puxam de 40 a 70 toneladas, por causa da alta demanda do agronegócio por cargas pesadas em rotas de longas distâncias, na casa dos milhares de quilômetros.
Os modelos extrapesados, de alta capacidade e potência, acima dos 500 cavalos, são os mais rentáveis – os preços dos mais sofisticados superam R$ 1 milhão – mas agregam mais tecnologia, o que também impulsiona o desenvolvimento local.
Três dos seis fabricantes no País, DAF, Scania, Volvo, são inteiramente dedicados a produzir caminhões pesados e semipesados, enquanto os outros três, Iveco, Mercedes-Benz e VWCO, também têm produtos relevantes deste portfólio.
Contraste com frota velha
Até agora esta é a parte positiva da história. A negativa são os caminhões velhos, poluentes e perigosos que ainda circulam no País.
A evolução da indústria brasileira de veículos pesados, em linha com alguns dos mais modernos mercados do mundo, contrasta com a idade média elevada da frota de 2,1 milhões de caminhões em circulação no País, segundo o mais recente levantamento do Sindipeças, de 2021.
Existem mais de 265 mil caminhões no Brasil com mais de 20 anos de uso, outros 918 mil com 11 a 20 anos de idade. São veículos altamente poluentes e que colocam em risco a segurança das vias, pois têm maior propensão a defeitos mecânicos.
Trata-se de uma vergonha nacional que nenhum governo foi capaz de resolver até o momento. É uma contradição que a indústria, preparada para produzir alguns dos melhores equipamentos de transporte rodoviário de cargas no mundo, conviva com caminhões velhos e perigosos que produziu há décadas.
Em vez de produzir caminhões maquiados para mulheres ou impor caras tecnologias de descarbonização do transporte – para públicos que sequer têm recursos para pagar por nenhum destes produtos – seria bem mais efetivo substituir as futilidades de marketing que dominam a tal agenda ESG das empresas, de governança socioambiental, pelo esforço urgente de se criar com o governo um programa efetivo de inspeção veicular, reciclagem e renovação da frota de caminhões, para que a evolução tecnológica possa, de fato, beneficiar a sociedade.
Em tempo: o Renovar, programa criado este ano pelo governo para estimular a troca voluntária de caminhões com mais de vinte anos de uso, há meses espera por regulamentações para ser aplicado e, da forma que está, tem tudo para dar errado, porque não tem instrumentos acessíveis de financiamento para o público-alvo e ninguém está obrigado a entregar para reciclagem seu caminhão ganha-pão por valores que não cobrem nem a compra de outro veículo menos velho.
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