O mais antigo dos Volkswagen de que se tem notícia está renascendo numa oficina na cidadezinha alemã de Wusterwitz, a partir de um chassi original de 1936. É uma peça de inestimável valor histórico que mostra onde pode ir o talento de restauradores, combinado ao conhecimento de estudiosos da marca.
Para situar o leitor, temos que voltar à Alemanha de 1936, quando a criação do Volkswagen, o "Carro do Povo", corria acelerada. Depois de construir os primeiros protótipos de forma bem artesanal no seu escritório de projetos em Stuttgart (chamados de V1, V2 e V3), Ferdinand Porsche partiu para a produção de uma série de 30 automóveis destinados a testes de estrada.
Batizados de W30, esses novos protótipos foram feitos na fábrica da Daimler-Benz, em Sindelfingen. Já traziam praticamente todas as características mecânicas dos futuros Fuscas - mas ainda faltavam os toques finais na carroceria, brilhantemente desenhada por Erwin Komenda.
Os 30 exemplares dos protótipos W30 foram testados sem pena, a partir de 1937, percorrendo 2,4 milhões de quilômetros de estradas que iam desde as velozes autobahnen até trilhas enlameadas ou mesmo caminhos a 2.500 metros de altitude. Assim, ajudaram a desenvolver a famosa robustez dos futuros Volkswagen. Concluído o ciclo de testes dos W30, foram criadas novas séries de protótipos - os V303, VW38 e VW39 - com as formas finais dos Fusca "split" que conhecemos hoje.
Já os W30 sobreviventes continuaram a ser usados em várias finalidades pela equipe do Dr. Porsche até que, em 1942, veio a ordem para que todos fossem destruídos - um procedimento até hoje comum nas fábricas. Como os carros foram escrapeados, parecia não haver sobrado nenhum W30 para contar história.
Damos um salto no tempo até 1998. Björn Schewe, funcionário da Volkswagen em Wolfsburg e estudioso da história do Fusca, fez uma viagem de 750 quilômetros até a Estíria, no Sul da Áustria, para conhecer o acervo de um colecionador e, quem sabe, comprar algumas peças. Depois de percorrer um galpão, bateu os olhos num chassi encostado na parede. Era, obviamente, um chassi de Fusca - mas tinha algo diferente...
O colecionador austríaco então explicou que aquele chassi era um remanescente da série de protótipos W30. Fora adquirido na década de 1960 próximo a Gmünd - cidade que abrigara a família Porsche, seu escritório de projetos e mais de 300 funcionários entre 1944 e 1950.
Excitado com a descoberta, Björn Schewe procurou o amigo Christian Grundmann, outro arqueólogo da pré-história da VW. Vale dizer que Grundmann tem uma impressionante coleção de Volkswagen e ficou famoso ao reconstruir o pré-série VW38/06 (de 1938) a partir de partes de uma carroceria original, achada num ferro-velho na Lituânia. Esse carro, contudo, já não tinha o chassi com que saiu da fábrica.
Já a autenticidade do chassi do W30 foi confirmada por meio de fotos do desenvolvimento desses protótipos. Vários detalhes estruturais eram diferentes dos que chegariam aos primeiros VW produzidos em série, em 1939. E o principal: a extremidade dianteira do chassi (o chamado cabeçote) tinha um formato só existente nos W30.
Depois de alguns anos - e muitas visitas - o colecionador austríaco finalmente topou ceder o chassi e mais um caminhão de peças em troca de um Schwimmwagen (VW anfíbio da Segunda Guerra) completo. A aventura da reconstrução do W30 estava por começar!
Na Alemanha, Schewe e Grundmann jatearam o chassi e descobriram nele o número 26 - ou seja: originalmente equipava o protótipo W30 placa IIIA 37026. Segundo registros encontrados pelo pesquisador Chris Barber, o carro número 26 perdeu sua carroceria em algum acidente durante a fase de testes. O chassi chegou a receber a carroceria número 8 por algum tempo. Depois, provavelmente, foi reaproveitado na montagem de um protótipo do jipinho Kübelwagen - daí ter sobrevivido e ser encontrado em Gmünd.
A ideia inicial de Grundmann era que o chassi número 26 equipasse uma réplica do protótipo W30 que estava sendo feita por encomenda da própria Volkswagen - mas, a essa altura (2002), a réplica construída para a VW já estava quase pronta, usando um chassi de Fusca pós-guerra.
Começaram então, a restaurar o chassi W30/26 e montar a mecânica, usando um estoque de peças de KdF-Wagen acumuladas ao longo de décadas (KdF é a sigla de Kraft durch Freude - Força pela Alegria - uma organização nazista voltada para o lazer dos alemães e que encampou os planos de produção do Volkswagen em 1938).
O motor de 23,5 cv usado na restauração data de 1939. A carcaça do câmbio foi fundida como a do W30 1936, mas as engrenagens são "mais modernas" - isto é, de 1939! Volante, suspensão, semi-eixos e freios também foram garimpados do estoque de peças de VW pré-guerra. Os bancos foram feitos a partir de fotos.
Em 2019, o chassi ficou pronto - e chegou a parte mais complicada: reconstruir a carroceria do W30/26. Andreas Mindt, chefe de design da Audi, se propôs a ajudar traçando em papel, em tamanho real, as linhas do protótipo W30. Referências para isso não faltaram: todo o processo de desenvolvimento do Volkswagen, nos anos 30, foi minuciosamente documentado em milhares de fotos e desenhos técnicos pela equipe de Ferdinand Porsche.
Apesar da silhueta parecida, nenhuma linha do W30 coincide exatamente com a dos primeiros Fuscas de série. Para começar, as portas são do tipo suicida, as janelas laterais têm medidas bem diferentes e não há vigia traseira - aberturas para refrigeração do motor ocupam o lugar do tradicional vidrinho bipartido ("split").
Os vincos e ressaltos estruturais do W30 já lembram os que seriam usados nos "besouros" de produção normal - mas passam por outros pontos da lataria. O capô dianteiro e a tampa traseira têm aberturas diferentes daquelas adotadas nos VW de série. Assim, foi preciso construir uma carroceria inteiramente nova, a partir do zero.
Para a difícil tarefa, Schewe e Grundman procuraram o ateliê René Große Restaurierungen GmbH & Co.KG, em Wusterwitz, a 80 quilômetros de Berlim. Restaurador de superclássicos, Grosse é um artista da chapa conhecedor dos processos usados pelos encarroçadores dos anos 30.
Aproveitando as facilidades tecnológicas do século XXI, os desenhos e fotos foram transformados num modelo em 3D em computador. Depois que as proporções foram conferidas várias vezes, chegou a vez de montar um molde de madeira, em tamanho real, usando nada menos que 30 lâminas verticais, dispostas a 10 centímetros uma da outra.
A partir daí, foram cortados moldes de papelão e, depois, a carroceria começou a ser construída na base do martelinho e da solda, a partir de folhas de aço com não mais que 1m³ cada. No total, foram mais de 40 desses retalhos, martelados, soldados e remartelados.
Os para-lamas ganharam forma a partir de moldes de arame. A todo momento eram necessárias correções nas inúmeras curvas da carroceria. Construídos originalmente na fábrica da Daimler-Benz, os W30 usavam alguns componentes do pequeno Mercedes 170V - daí que foi fácil conseguir detalhes como rodas e maçanetas.
Depois de cinco anos de trabalho intenso e criterioso, o carro agora está praticamente pronto. Falta acertar o tom de cinza com que a carroceria será pintada - e com tinta de nitrocelulose, como antigamente, sem o brilho intenso dos esmaltes atuais. A ideia é que o Volkswagen mais antigo do mundo - o protótipo W30, chassi número 26 - faça sua reestreia por volta de setembro. Daqui já estamos loucos para ver o resultado final.
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