Na semana passada, escrevemos aqui sobre a meteórica carreira de Venina Piquet, a primeira mulher a ganhar provas automobilísticas no Brasil. Uma coisa puxa a outra e veio a questão: quem foi a primeira motorista habilitada no país? Voltamos ao passado para encontrar a resposta.
No livro "Automóvel no Brasil: 1893-1966", principal referência histórica sobre o início da motorização do país, o autor Vergniaud Calazans Gonçalves cita - no tópico de 1918 - uma certa senhora Batista Franco, "esposa do comandante do Porto de Santos", como primeira motorista em São Paulo, "sob protesto das famílias mais tradicionais".
Mergulhamos em jornais antigos atrás de outras informações e encontramos histórias ainda mais remotas sobre as primeiras motoristas do Brasil. Aliás: chauffeuses, como se dizia na época. Era o feminino de chauffeur - termo francês que vinha dos tempos dos veículos a vapor, quando era preciso aquecer ("chauffer") a caldeira antes de partir. Daí o aportuguesado chofer!
Pois bem... Os primeiros automóveis chegaram ao país na última década do século XIX, tempo em que os governantes ainda não haviam estabelecido normas para conduzi-los. Em 13 de maio de 1896, o jornal "O Paiz" registrava os passeios da provável primeira motorista do Brasil:
"Em Petrópolis, uma elegante victoria movida por petróleo e conduzida por uma senhora passeia quase diariamente por todas as ruas e avenidas, subindo e descendo rampas, voltando pontes, diminuindo ou acelerando a marcha com a maior facilidade". O nome da pioneira não foi registrado para posteridade, mas o único automóvel de Petrópolis na época pertencia ao médico João Paulo de Carvalho.
Na falta de uma Carteira Nacional de Habilitação, as primeiras licenças para conduzir passaram a ser emitidas pelas prefeituras. No Rio de Janeiro, então Capital Federal, isso foi normatizado em um decreto publicado em 15 de abril de 1902.
Somente cinco anos depois, contudo, é que uma mulher seria habilitada na cidade: em 26 de julho de 1907, a senhorita Virginia Lowndes foi ao Campo de Santana, no centro do Rio, fazer sua prova de condução. Ao volante de um pequenino Reo, ela foi aprovada em todos os testes propostos por seu examinador, o sr. Affonso de Carvalho.
Virginia Lowndes nasceu em 9 de abril de 1885. Dias depois, sua mãe morreu de complicações pós-parto. Daí que a menina cresceu fortemente influenciada pelo pai, o tenente-coronel John Henry Lowndes. De família britânica, ele era industrial de tecidos, sócio de uma fábrica de fósforos e, além disso, dedicava-se ao comércio exterior, importando desde material para construção de estradas de ferro até latas de Leite Moça (sim, na época, o leite condensado vinha de fora).
Tamanha empolgação nos negócios permitia ao sr. Lowndes cobrir a filha de mimos. Virginia tinha do bom e do melhor. Vivia a rotina típica das mademoiselles finas da época: entre um baile e um recital nos clubes mais elegantes da cidade, angariava fundos para asilos, orfanatos e sanatórios. Naquele tempo, moças de bem se casavam cedo. Aos 22 anos, porém, Virginia ainda não pensava em subir ao altar. Em vez disso, a progressista jovem resolveu obter sua carteira de habilitação! Era algo tão incomum que jornais de todo o país deram a notícia:
"A senhorita Virginia Lowndes, sobrinha do conde de Leopoldina, foi submetida a exame a fim de exercer o lugar de chauffeuse de automóvel, sendo aprovada pela perícia que revelou. O caso prendeu a atenção pública por tratar-se da primeira senhora brasileira chauffeuse."
A notícia se espalhou. Passados poucos dias, porém, o jornal paulistano "Diário Popular" reivindicou o pioneirismo para São Paulo, assegurando que a carioca Virginia não era a primeira chauffeuse habilitada no país:
"As honras cabem à senhorita Andréa Patureau de Oliveira (...). Esta senhorita, em março de 1906, fez o exame e tirou a carta exigida pela fiscalização de veículos. Isto é: há mais de um ano!"
Maria Andréa Patureau de Oliveira (1889-1942) fugia totalmente ao padrão esperado para uma menina brasileira da Belle Époque. Ela nasceu no Rio, mas acompanhou o pai, Climaco César de Oliveira, quando este foi nomeado escrivão no Fórum de São Paulo.
O salário do pai, pelo jeito, era ótimo. Tanto que, em 1905 - quando tinha apenas 16 anos! - Andréa já trafegava pelas ruas da capital paulista ao volante de um automóvel francês Mors 9HP. Com esse carro, ela chegou a se inscrever em um páreo no Jockey Club Paulistano. É isso mesmo: bem antes da primeira corrida de automóveis ser realizada oficialmente no Brasil (o Circuito de Itapecerica, em 1908), alguns chauffeurs aplacavam sua fome de competição no hipódromo, entre as provas de turfe.
Em 3 de setembro de 1905 caiu um forte aguaceiro na cidade de São Paulo, afastando os automobilistas inscritos no páreo do dia. A prova foi cancelada por causa do mau estado da raia. Andréa, porém, não se deu por vencida: não só compareceu ao Jockey Club, como fez algumas exibições de seu Mors para o público.
Em 1906, veio a habilitação. Quando recebeu oficialmente a licença para conduzir, Andréa tinha apenas 17 anos e - muito avançada - já era aluna do 2º ano da Faculdade de Direito de São Paulo.
Juntamente com a irmã Maria Luiza, Andréa Patureau de Oliveira se formou advogada no fim de 1909, aos 20 anos, quando a imensa maioria de suas contemporâneas já tinha abandonado os estudos para lavar fraldas. As doutoras Andréa e Maria Luiza, além de tudo, eram exímias atiradoras. Foram ainda fundadoras de uma sociedade para regeneração de presos. Quando decidiu que estava na hora, Andréa se casou com um entusiasmado automobilista, Edgard Rodovalho, dono de um Charron 20HP.
As pioneiras fugiam ao convencional. Annita Tibiriçá, uma chauffeuse habilitada em dezembro de 1907, também era campeã de tiro, pianista de concertos e se formou na Escola Livre de Pharmacia de São Paulo. Era ela quem guiava o automóvel para o pai, Jorge Tibiriçá, governador de São Paulo entre 1904 e 1908.
Já a primeira mulher a ser parada por excesso de velocidade foi Tina Di Lorenzo (1872-1930), grande atriz teatral italiana que passava uma temporada no Rio. Consta que um dia, em 1909, ela pôs seu chofer particular no banco do carona e percorreu a Avenida Beira Mar com o pé na tábua. Ignorou dois fiscais de trânsito, mas o terceiro não a perdoou. Como Tina não tinha carteira, o motorista teve que reassumir o volante.
De todas as chauffeuses aqui citadas, a que tocou a vida de modo mais convencional para os padrões da época foi Virgina Lowndes. Na avançadíssima idade de 27 anos (em 1912), ela se casou e assumiu o sobrenome Hargreaves. Ficou viúva na década de 50 e morreu aos 97 anos, em 1982 - quando mulher ao volante já era a coisa mais normal do mundo.
Essas brasileiras pioneiras tiveram que superar muito preconceito. Em 1905, um artigo da revista "O Malho", reproduzindo o texto de um jornal belga, afirmava que "dirigir nunca será uma arte feminina". A publicação previa que "as imperfeições habituais de caráter do sexo fraco" causariam horríveis resultados no trânsito. "Mulheres nervosas aprendem a controlar os impulsos, mas as distraídas levam muito tempo para dominar sua impudência e a concentrar a atenção dispersa...".
"Uma chauffeuse conversa com os seus companheiros de viagem, pensa na sua toillete numa curva perigosa, outra pensa no noivo e não vê o letreiro que indica perigo", malhou "O Malho". Já a revista "Fon-Fon" publicou uns versinhos logo depois que Virgina Lowndes passou no exame de condução. Uma pérola do machismo:
"Diz o Jornal, numa estirada vária,
Haver sido aprovada em sério exame,
Uma chauffeuse, dama temerária,
Que vem, firme, ao Fon-Fon, fazer reclame.
Ser chauffeuse é missão desnecessária,
Para que uma mulher aqueça e inflame,
basta apenas que seja proprietária
de uns belos olhos e que olhe sem vexame.
(...)
É estranho que uma dama esbelta e fina,
Se mova num fon-fon vertiginoso,
Pelas ruas soltando a gasolina!"
Fato é que a chegada do automóvel, ainda que restrito às classes mais privilegiadas, mudou a rotina das mulheres da Belle Époque - a começar pelo vestuário. Os chapelões gigantes tiveram suas abas encurtadas ou, simplesmente, foram trocados por echarpes e lenços. Os vestidos longos com espartilho e dezenas de anáguas foram trocados por jupes-culottes (as precursoras das calças femininas), muito mais cômodas. Tudo para abrir portas, assumir a direção e alcançar novos horizontes.
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