Quando se fala em carros da Presidência da República, a maioria pensa logo no eterno Rolls-Royce Silver Wraith conversível, fabricado em 1953 e até hoje em serviço. Outros se lembram dos Ford Landau usados a partir da década de 70 e aposentados no governo Collor. Os mais antigos talvez evoquem o Lincoln KB 1934 conversível com que Getúlio Vargas, a cada Primeiro de Maio, dava sua volta olímpica no Estádio de São Januário.
Mas qual foi o primeiro automóvel oficial da Presidência da República? E quem foi o primeiro chefe de Estado brasileiro a trocar as carruagens por um carro com motor a gasolina? Essas informações pareciam perdidas no tempo até que, por puro acaso (enquanto fazíamos outra pesquisa), esbarramos na edição do Jornal do Brasil de 23 de abril de 1907: "Está desde anteontem no Palácio do Catete o automóvel importado especialmente para o Sr. Presidente da República"...
O melhor é que a nota cita o nome do fabricante - a marca francesa Charron, Girardot & Voigt (C.G.V.) - e também descreve detalhes do modelo:
"É um carro de aparência elegante lembrando muito os automóveis elétricos, porque tem o aparelho motor, composto de quatro cilindros separados, sob as almofadas do chauffeur."
O texto expõe até os pormenores da cabine:
"A 'carrocerie', em forma de 'landau' é caprichosamente forrada de casimira bege, tendo lugar para quatro pessoas, em bancos 'vis-à-vis", e dispondo de todas as comodidades para o passageiro, como buzina, relógio, tímpano etc."
O Rio de Janeiro, então capital federal, vivia tempos de grande entusiasmo com o automóvel. Dos parcos 12 exemplares registrados na cidade em 1905, o número havia pulado para 66 no ano seguinte e continuava a crescer em ritmo acelerado. Em 1907, foram criados o Automóvel Club do Brasil e a revista Fon-Fon, que trazia um resumo bem humorado das notícias da semana - e foi uma charge publicada na Fon-Fon ("O Palácio do Governo tem agora automóvel oficial") que nos deu a certeza de que o Charron, Girardot & Voigt foi realmente nosso primeiro carro presidencial.
Autoridades de alta patente e quase todos os ministros da República (eram apenas sete ministérios à época) já rodavam motorizados pela cidade, mas o presidente Affonso Pena ainda usava velhas carruagens para cumprir seus compromissos. Era algo que simplesmente não combinava com a recém-inaugurada Avenida Central (hoje Rio Branco), que deu ares de Paris ao centro do Rio.
Político desde os tempos do Império, o jurista mineiro Affonso Pena tomara posse, como sexto presidente da República, em novembro de 1906. Sua agenda incluía a modernização do sistema cambial, a ampliação da rede ferroviária, a ligação da Amazônia ao Rio por telégrafo e uma renovação geral no Exército e na Marinha. Daí a atualizar a garagem do Palácio do Catete foi um pulo...
A importação do Charron, Girardot & Voigt, curiosamente, foi feita pelo Ministério da Marinha, então capitaneado pelo almirante Alexandrino Faria de Alencar. A encomenda foi feita à Casa Lambert, que vendia no Rio todo tipo de produto fabricado na França. Assim, em 19 de abril de 1907, o navio a vapor francês Campinas atracou no Arsenal de Marinha e desembarcou o automóvel, que foi imediatamente repassado à Presidência da República.
O chassi do Charron, Girardot & Voigt presidencial fora vestido pela encarroçadora Mühlbacher et Fils, de Paris. Sua carroceria tipo landaulet e com banco do motorista posicionado sobre o motor (ao estilo "conduite avancé", ou direção avançada) dava ao modelo um jeitão de carruagem sem cavalos.
Ao volante, o único conforto era um "puxadinho" no teto para evitar que o chauffeur tivesse uma insolação no calor dos trópicos. Quando o motor a gasolina de quatro cilindros, cinco litros e 24cv estava desligado, o C.G.V. podia ser confundido com os táxis elétricos da época.
O jornal O Século julgou que o governo fizera bom negócio: "Somos contrários à mania da aquisição, por parte do governo, de automóveis para tudo. Se, porém, ele insiste em adquirir esse gênero de veículo, que ao menos faça como agora, que comprou por 16 contos um automóvel que vale muito mais. Há por aí outros de mais preço e pior qualidade".
Para se ter uma ideia, 16 contos em 1907 era o preço de uma boa casa com jardim no aprazível bairro carioca de Vila Isabel. Mas devia ser mesmo bom negócio, tanto que o Ministério da Marinha logo comprou outro C.G.V. igualzinho e pelo mesmo preço, para uso do almirante Alexandrino.
"Era o único que faltava. Agora está completo o ministério dos... automóveis!", comentou em tom de piada um redator de Fon-Fon.
Em 20 de abril de 1907, apenas um dia depois do desembarque no Arsenal de Marinha, o automóvel presidencial foi levado ao amplo jardim do Palácio do Catete para uma voltinha de apresentação a Affonso Pena. Contrataram até um chauffeur estrangeiro, que teoricamente seria um "perfeito conhecedor do sistema". Mas deu-se aí o primeiro acidente: o profissional não era tão hábil quanto diziam e, nas arrojadas manobras de demonstração, chocou o C.G.V. contra um portão, amassando um dos para-lamas. O motorista durou pouco no cargo.
O imprevisto, contudo, não desanimou Affonso Pena, que ganhou agilidade em suas atividades fora do palácio. Esmiuçando publicações da época, achamos fotos do Charron, Girardot & Voigt parado em frente às obras de construção da Escola Barth, no Flamengo, ou numa ida do presidente ao Arsenal de Marinha, para conhecer navios dos Estados Unidos em visita à costa brasileira.
Na aurora do automóvel no Brasil, devia ser difícil achar um bom motorista por aqui. Suas imprudências chegavam às páginas dos jornais e revistas - como quando o carro presidencial pegou uma contramão na Avenida Central, a toda velocidade, para não perder tempo atrás de um desfile militar.
A última nota em que encontramos uma citação ao Charron, Girardot & Voigt da Presidência foi publicada no jornal O Paiz, em 2 de dezembro de 1908:
"Ontem pela manhã deu-se um choque de veículos na rua Sete de Setembro, esquina da Praça Quinze de Novembro. O automóvel presidencial, guiado pelo motorista Joaquim José de Almeida Aymoré, foi de encontro ao carro de praça nº 14.020, dirigido pelo cocheiro João de Oliveira Martins, ficando ambos os veículos avariados. (...) No automóvel viajavam o major Affonso Monteiro e outros oficiais da Casa Militar do sr. presidente da República. (...) A polícia do 1º Distrito cassou a carteira do motorista, culpado do acidente."
É provável que o pioneiro C.G.V. tenha sofrido perda total. Outra hipótese é que o carro acidentado foi transformado em um pequeno caminhão, utilizado para transportar livros para o novo edifício da Biblioteca Nacional, inaugurado em 1910 na Avenida Central.
Registros mostram que, em 1910, a frota da garagem do Catete já estava bem ampliada e com modelos mais modernos.
O presidente Affonso Pena não chegou ao fim do mandato. Morreu de pneumonia, em junho de 1909, deprimido com a morte de um filho (seu oficial de gabinete) e abatido pela pressão do ministro da Guerra, marechal Hermes da Fonseca, nas brigas pela sucessão. Nilo Peçanha, o vice, assumiu, cumprindo o ano e meio que faltava para o fim do mandato.
Fernand Charron, Léonce Girardot e Émile Voigt foram pioneiros ao montar, na Paris de 1897, uma agência para vender e fazer a manutenção de automóveis no mesmo conceito das concessionárias atuais. Os três eram pilotos oficiais da Panhard-Levassor, sendo que Charron e Girardot venceram importantes provas da era pré-GP, como a Gordon Bennett Cup.
O passo seguinte veio em 1902, quando o trio de franceses fundou sua própria marca de automóveis: a Charron, Girardot & Voigt. O êxito nas corridas não foi o esperado mas, por outro lado, a companhia sediada no subúrbio parisiense de Puteaux chegou a ter uma linha de montagem nos Estados Unidos. Foi também uma das pioneiras na construção de veículos blindados, para atender à Rússia Czarista. O rei de Portugal teve um carro da C.G.V. e os motores da marca também foram adotados em barcos. A fábrica foi a primeira a fazer carros com três pedais na mesma ordem usada até hoje. Sua produção anual girava em torno de 200 ou 250 exemplares.
O carro importado para a Presidência do Brasil, em 1907, foi um dos últimos a sair com a marca Charron, Girardot & Voigt. A essa altura, Léonce Girandot já havia deixado a empresa para dedicar-se à produção de automóveis híbridos. Fernand Charron, por sua vez, saiu em 1908 para criar a marca Alda (sigla de "Ah, la Délicieuse Automobile"), especializada em carros de corrida.
Um grupo britânico assumiu o controle da C.G.V. e mudou seu nome para Automobiles Charron Limited, companhia que durou até 1930.
Hoje, sabe-se de apenas seis carros sobreviventes da Charron, Girardot & Voigt original - um deles continua na França e é muito parecido com o primeiro automóvel presidencial do Brasil.
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