Em 1969, os principais assuntos eram a guerra do Vietnã e a chegada do homem à Lua. No noticiário nacional, os brasileiros só podiam ler o que a censura permitia. O tricampeonato mundial de futebol era apenas uma promessa e Emerson Fittipaldi estava para estrear na Fórmula 1. Para ir de Niterói ao Rio era preciso pegar a barca Valda, pois a construção da ponte mal havia começado.
E, aos 17 anos, o niteroiense Edson Monteiro de Araújo ganhou da mãe um táxi VW-1600 zero-quilômetro. A ideia é que, ao completar 18, o jovem tirasse a "carteira C", de motorista profissional, e assumisse o volante para bancar os estudos. O que ninguém podia imaginar é que, 51 anos depois, o carro e seu dono ainda estariam juntos na luta do dia a dia.
- Fui pegando amor pelo carro, confiança. Já passei em cada lugar e ele nunca enguiçou! Não decepciona, não quebra. Hoje, os clientes não me deixam vender. Se está funcionando bem e continua tendo passageiro, vou ficando - explica o motorista.
Quando novo, o modelo VW-1600 dominava a praça e era mais conhecido pelo nome de Fusca Quatro Portas. Com o passar dos anos, vieram alcunhas como Saboneteira e Zé do Caixão. Mas, para Edson, seu carro é simplesmente o Pururuca, um carinhoso apelido caseiro.
- Nem falo isso pros outros. É só entre eu e o carro mesmo...
Até que se prove o contrário, este é hoje o táxi mais antigo do Brasil. E duvidamos que alguém encontre outro carro que esteja batalhando na praça com o mesmo motorista há mais de meio século. A dupla, contudo, quase teve que se separar em 2015, quando a Prefeitura de Niterói sancionou uma lei para tirar das ruas os táxis com mais de sete anos de fabricação:
- Aquilo foi um tormento para mim! Eu precisava de dinheiro para dar entrada em um novo táxi e cheguei a anunciar meu Quatro Portas - lembra.
A essa altura, Edson e seu conservadíssimo VW-1600 já eram famosos na cidade. O anúncio da aposentadoria forçada chegou ao noticiário e causou comoção entre os niteroienses.
- Graças a Deus, meus clientes fizeram um abaixo assinado e entregaram ao vereador Betinho. Ele veio me procurar, perguntou se podia propor na Câmara que meu carro permanecesse nas ruas e fez um projeto que foi aprovado por unanimidade! Esse é o único táxi de Niterói com decreto de tombamento e, com isso, pôde continuar rodando - conta o motorista.
Promulgada em 25 de janeiro de 2016, a Lei Municipal Nº 3206 considera o "Fusca Sedan, ano 69, quatro portas todo original" de Edson um "patrimônio cultural de interesse público".
- Virou uma atração turística. Muita gente de outras cidades pega o carro para dar uma voltinha e matar a saudade de outros tempos. Vem no ponto e só quer pegar o meu carro! - afirma o chofer.
O que primeiro impressiona é o fechamento suave das portas, apesar dos 51 anos de uso por passageiros nem sempre delicados. "Click!" e pronto: a porta está perfeitamente alinhada com o resto da carroceria. O mesmo vale para o capô traseiro: Edson encosta suavemente a tampa, faz uma leve pressão com a ponta dos dedos e "click!". O motorista não consegue esconder um sorrisinho de orgulho:
- Eu mesmo cuido do básico. Gosto de mecânica, então aprendi.
No trânsito, muita gente olha e aponta. Colegas mais jovens deixam o caminho aberto para que o velho Volks passe adiante. Como passageiro (e dono de um Fusca 1300, também de 1969), fico de queixo caído com o silêncio do táxi em marcha. Nada bate na cabine, a suspensão é justinha e o motor de 1.584 cm³ e 60 cv ronrona lá atrás.
- Olha que o escape está furado. Era para ser ainda mais silencioso - diverte-se Edson diante do espanto do repórter.
A manutenção é à moda antiga, cheia de cuidados. O óleo é trocado a cada 2.500 quilômetros:
- E nada de óleo moderno. Uso o Castrol GTX comum, mineral mesmo, 20W-50.
Já o óleo do câmbio é trocado a cada 10 mil km. E, claro, esse táxi de 1969 tem graxeiras, algo extinto nos carros atuais:
- É a melhor coisa que existe. Lubrificando sempre, a suspensão dura eternamente! Faço os quatro pinos a cada 5 mil km, ou quando o carro passa por chuva forte e algum alagamento.
De mais moderno, digamos assim, só mesmo a gasolina aditivada. Mas nada de GNV.
- O motor 1600 a ar não se dá bem com gás. Os cabeçotes aguentam pouco tempo. O que você ganha no abastecimento, gasta na manutenção. Estando sempre reguladinho, o carro faz 10 km/l na cidade - gaba-se o motorista.
As mudanças ao longo dos anos foram mínimas. De pouco alcance, os faróis retangulares usados originalmente no VW-1600 de 1969 deram lugar a dois pares de sealed-beams redondos, que foram adotados na linha VW de 1971 e iluminam bem melhor. Também por questões práticas, o dínamo deu lugar a um alternador.
Bem no clima Velha Escola Brasil (VEB), o volante original foi substituído por um Fittipaldi Fórmula 1, transplantado de um Puma batido. Um toca-fitas TKR dá o som ambiente. As rodas são de magnésio, também dos anos 70, e outra típica bossa da época é a placa reposicionada sob o para-choque. Originalmente branco lótus, Pururuca teve que ser pintado de azul escuro com faixas brancas, padrão usado nos táxis de Niterói desde a década de 80. O taxímetro Capelinha deu lugar a um digital. E só.
- Viu o conforto do banco de trás? A forração original está por baixo. Fui no capoteiro, mandei fazer capas e pôr as espumas em vez de algodão. Ficou muito mais macio do que nos carros populares de hoje.
Apesar dos tantos anos de labuta no trânsito pesado de Niterói, Pururuca nunca levou batida que afetasse sua estrutura - só amassados corriqueiros de trânsito, fáceis de recuperar. O advento da internet facilitou a compra de peças. Reforma grande houve apenas uma, em 2000:
- Na época, pensei em comprar um Santana, mas os clientes fiéis pediram para eu ficar com o Quatro Portas, que a essa altura já era uma antiguidade! Foi aí que eu resolvi fazer uma reforma completa no carro com o dinheiro que daria de entrada no Santana. Tiramos a pintura e deixamos na chapa, realinhamos os vincos, fizemos tudo o que tinha que fazer de suspensão e câmbio. Ficou muito bonito e voltei a pegar corridas pra longe: Cabo Frio, Araruama, sempre em horário bom...
Nos áureos tempos da praça, o táxi rodava diariamente uns 150 km com o dono e mais 150 km com um segundo motorista. Hoje, o VW-1600 faz uns 50km por dia - chegando, no máximo, a uns 100km se o movimento estiver excepcionalmente bom.
Edson não é desses que anotam em um caderninho tudo o que faz no carro e já perdeu as contas de quantas voltas deu o hodômetro. Mas dá uma pista de quanto o carro rodou ao longo de 51 anos:
- Tratando legal, são 200 mil quilômetros até precisar de retífica. E cada motor aguenta duas ou, no máximo, três retíficas - na quarta, o material já fica frágil e começa a soltar os estojos que prendem os cabeçotes. Pois bem: já estou no quinto motor desde 1969! Faz as contas aí...
Fizemos as contas com base nesses dados. Pelo cálculo mais conservador, de apenas duas retíficas por motor, o Quatro Portas de Niterói já rodou 2,6 milhões de quilômetros (uns 51 mil km/ano). Se levarmos em conta três retíficas por motor, chegamos a 3,4 milhões de quilômetros - cerca de 66 mil km/ano). O número real deve estar entre esses dois extremos.
Desde 1969, Pururuca já atravessou crises do petróleo, hiperinflação e incontáveis tempestades na Economia brasileira. Mas só a pandemia de Covid-19 foi capaz de parar o táxi por um longo período.
- Fiquei mais de um ano sem rodar. Somente há uns dois meses, depois de tomar a segunda dose da vacina, voltei pra rua - conta Edson.
A concorrência de carros 50 anos mais modernos, com ar-condicionado, não assusta o motorista. E mais: depois do coronavírus, o jogo voltou a empatar, já que todos os táxis passaram a rodar com as janelas abertas:
- Se você botar um termômetro, vai ver que o Quatro Portas não é tão quente. Tem ventilação no painel e quebra-ventos que refrescam bastante. Eu pego no serviço de manhã e, se estiver muito calor, dou uma pausa para continuar mais tarde, até dez, dez e meia da noite. No verão, se aparecer uma corrida para o Centro do Rio, naquele trânsito todo, passo a vez pro colega...
Hoje, os maiores problemas são a gasolina cara e a concorrência do Uber. Até quando a dupla será vista pelas ruas de Niterói?
- Não vai demorar muito tempo não. Já estou com 69 e acredito que daqui a uns três ou quatro anos eu pare com o táxi. Não é questão de cabeça, mas o trânsito é uma bomba e não bate com a idade.
Depois da aposentadoria como táxi, Pururuca vai virar o carro particular de Edson?
- Não. Aí terei que me desfazer do Quatro Portas. Tenho duas filhas que detestam dirigir. Tenho duas netas, pequenininhas ainda. Minha mulher tem um ciúme danado de mim com esse carro. Se eu deixar guardado, ele vai apodrecer e isso vai quebrar meu coração. Nem sei se vou ter carro particular depois que sair da praça.
Enquanto esse dia não chegar, Pururuca e Edson continuarão batendo ponto na esquina das ruas Pereira da Silva com Paulo Gustavo, no elegante bairro de Icaraí.
- Tem muita gente que ainda adora esse carro, sente-se bem em andar nele, lembra-se de coisas boas que passaram. Hoje, o meu prazer é ensinar o pessoal a conservar as coisas, dar valor, ter mais amor - despede-se Edson, ao partir para mais uma corrida.
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