É inegável que quatro meses seguidos de crescimento nas vendas de veículos sobre o mês anterior representam um alívio considerável diante do que se viu em março e abril, quando a pandemia de coronavírus abriu um precipício econômico sem precedentes para a indústria automotiva – e o mundo todo. Assimilado o terror inicial diante da crise, viu-se que foi muito rápida a chegada ao fundo do poço, mas também é inquestionável a enorme profundidade da queda, o que torna penosa e lenta a escalada de volta ao topo.
Sim, o paciente melhorou, mas segue gravemente doente. Agosto marcou o quarto mês seguido de evolução das vendas, mas a velocidade da recuperação foi desacelerada de 31,4% entre junho e julho para 5,1% entre julho e agosto, o que ainda é explicado pelo represamento de emplacamentos causados pelo fechamento de Detrans no país.
Já está certo que a retração do mercado será menor do que a inicialmente prevista, mas também está igualmente certo que o resultado deste ano será muito ruim, pois o tamanho da queda em relação a 2019 é enorme, seja qual for a projeção, que hoje varia de otimistas 25% (com 2,1 milhões de veículos vendidos este ano), passa pelo que parece mais realistas 30% (1,96 milhão) e baixa ao superado pessimismo que previa o tombo de 40% (1,67 milhão).
O fato é que a indústria deve perder algo como um terço do mercado interno de 2019, e não há sinais de recuperação breve em apenas um ano. Para piorar, os mercados de exportação do Brasil estão em situação ainda mais crítica e as perspectivas seguem sendo de retração continuada. Com isso, a ociosidade das fábricas está na casa de 65% – é como se 6 das 60 plantas de veículos e motores no país estivessem paradas.
Associação dos fabricantes, a Anfavea admite que a situação é insustentável: as demissões já começaram e devem aumentar nos próximos meses porque não há perspectivas de melhora no curto ou médio prazos, e as empresas vão fazer cortes assim que forem esgotados, até o fim do ano, os mecanismos de afastamento temporário ou redução de jornadas e salários – a Volkswagen confirmou que negocia com sindicatos a redução de 35% no quadro de funcionários de suas quatro fábricas brasileiras, o que equivale a cerca de 5 mil pessoas. Portanto, ainda que melhor, o cenário permanece severamente crítico.
A Anfavea, ao divulgar o balanço deste mês, admitiu que ainda no início de junho fez uma projeção muito pessimista quando estimou em 40% a queda anual do mercado em 2020. O presidente da entidade, Luiz Carlos Moraes, justificou dizendo que, na época, com os elementos que tinha à mão, não era possível ver nada melhor do que isso – falava-se em queda do PIB de até 10%, contra 5% hoje.
Diante de perspectivas mais positivas (ou menos negativas), a Anfavea já prometeu divulgar novas previsões no começo de outubro, que em tese serão melhores, mas alerta que a situação é instável, ainda existem incertezas no horizonte e o cenário segue crítico, seja com queda das vendas de 35%, 30% ou 25%. Também permanece como ameaça no horizonte próximo o fim das condições que permitiram melhorar as previsões.
O esperado “apocalipse” foi atenuado, principalmente, por medidas de proteção ao emprego que já preservaram cerca de 25 milhões de trabalhadores, com redução de jornada e salários ou afastamento temporário com parte dos vencimentos paga por fundos públicos ao custo de aproximadamente R$ 50 bilhões; além do auxílio emergencial de R$ 600/mês pagos a 65 milhões de pessoas que ficaram sem renda – claro que ninguém comprou um carro com isso, mas o mecanismo reduz os abjetos níveis de pobreza do país, injeta algo como R$ 250 bilhões na economia, alimentando comércio, transporte e serviços.
Tudo isso, no entanto, retardou mas não resolveu o problema, que pode ganhar força quando esses mecanismos forem esgotados até o fim do ano. Já existem estimativas que o desemprego poderá dobrar para mais de 20 milhões de pessoas e a perda da assistência (que já cortada à metade) vai causar perda de renda e consumo em níveis ainda desconhecidos.
A instabilidade do crescimento mensal das vendas de veículos no país pode ser melhor verificada quando se olha para o desempenho das vendas nos 27 estados brasileiros. Em agosto sobre julho houve considerável queda de 17% nos emplacamentos registrados em São Paulo, o maior mercado nacional, contra crescimento meteórico de 18.000% no pequeno mercado do Piauí, porque lá o Detran ficou fechado até um mês antes. Essa desigualdade comprova que ainda há represamento de emplacamentos de carros vendidos meses antes, levantando dúvidas sobre qual é o ritmo real da recuperação, o que poderá ser melhor aferido em outubro, quando em tese esses resíduos devem se esgotar.
O mercado de caminhões, por exemplo, que parecia ter se descolado da crise graças à força do agronegócio brasileiro (que precisa transportar centenas de milhões de toneladas de produtos), registrou queda nas vendas de 15% entre julho e agosto. O crescimento vigoroso que vinha sendo verificado se transformou em retração por falta de produtos a entregar e porque boa parte das encomendas represadas já foi entregue – foram pedidos feitos antes de abril, que só puderam ser atendidos de dois a três meses depois, por causa da paralisação das linhas de produção.
Outro fator que segura o crescimento é a estagnação do crédito. A concessão de novos financiamentos para compra de veículos cresce menos ou até cai um pouco em relação ao total de vendas, ou seja, não acompanha na mesma proporção o avanço do mercado. Em agosto, enquanto os emplacamentos totais de veículos novos cresceu 5,1%, as vendas financiadas ficaram estacionadas, caíram imperceptíveis 0,1%, e foram responsáveis por apenas metade dos negócios – em condições normais esse porcentual fica acima de 60%. De um lado, o consumidor se retrai por falta de renda ou medo de assumir compromissos diante da ameaça de ficar desempregado; de outro, os bancos se retraem sob o risco da inadimplência e cobram juros muito elevados.
Levando os vários fatores em consideração, é fato que o cenário é menos ruim do que foi inicialmente imaginado, como também é fato que a tempestade perfeita que se abateu sobre o mundo inteiro ainda não passou e seu legado de devastação é enorme, ainda que de tamanhos diferentes entre países que lidam melhor com a crise e os que lidam pior – o Brasil até agora parece estar no segundo grupo.
Fotos: divulgação
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