Após passar cerca de três meses apontando a instabilidade política da gestão do governo Bolsonaro por piorar bastante a grave crise trazida pela pandemia de coronavírus, a Anfavea adotou tom mais pragmático no início de junho, quando divulgou novos recordes de baixa de vendas, exportação e produção da indústria de veículos no País.
Desta vez a entidade que representa os fabricantes decidiu divulgar uma informação que resistia em calcular desde março: sua previsão para o mercado brasileiro em 2020, um tombo de 40% sobre 2019, o que significa 1,67 milhão de veículos vendidos, resultado que não se via tão ruim desde 2004. Ao mesmo tempo, o presidente da associação, Luiz Carlos Moraes, lembrou que a capacidade técnica instalada de produção de 5 milhões de unidades/ano é incompatível com o atual tamanho reduzido de vendas domésticas e externas. Portanto, a seguir como está, as demissões serão inevitáveis.
Após a divulgação o número e da preocupação que ele carrega, Moraes deixou uma ponderação importante no ar: “Esta previsão que fazemos agora foi feita com base na situação atual e não leva em conta nenhum tipo de estímulo à economia, que pode mudar esse cenário, o que esperamos que aconteça”, ressaltou.
A mudança de discurso sugere que, em vez de reclamar com razão mas sem sucesso, talvez o setor tenha decidido mostrar na prática ao que resta de governo no país que o vírus derrubou o castelo liberal de cartas da economia – não só aqui, mas no mundo todo – e sem ajuda estatal assertiva "a casa vai cair".
A moeda de troca do setor é o seu peso na economia de cerca de 20% do PIB industrial brasileiro, que gera algo como 1 milhão de empregos na cadeia, contando 125 mil em 65 fábricas de veículos e o restante em fornecedores de componentes e serviços, além da rede de 7,3 mil concessionárias – estas duas últimas porções já começaram a demitir e encolher.
Por ajuda estatal assertiva entenda-se, como prioridade, uma oxigenação de dezenas de bilhões de reais para reabilitar o caixa das empresas de toda a cadeia automotiva, que parou de respirar por falta de oxigênio do faturamento. Depois devem vir os estimulantes para fazer o paciente voltar a andar: no caso, incentivos ao consumo de veículos, o que pode ser feito pela via da redução de impostos, estímulo à concessão de crédito e um eventual programa de renovação da frota. No entanto, nada disso vai funcionar sem o regresso ao país de uma política de geração de emprego e renda – é o que faz consumo e confiança crescerem.
No momento, o setor tenta construir com o apoio do governo uma fórmula para destravar os bancos, que evitam conceder empréstimos a juros comportados na iminência de risco sistêmico de explosão da inadimplência das empresas e pessoas. Um dos caminhos seria fazer o banco estatal de fomento BNDES garantir parte dos financiamentos de capital de giro, reduzindo assim o custo financeiro das operações de crédito. Sem confirmação até agora, especula-se que estaria em gestação um pacote de socorro para um grupo de fabricantes de algo como R$ 4 bilhões por empresa, em que o BNDES entraria com um quarto dos recursos e bancos privados com o resto.
No Brasil, dentro do objetivo de liberar mais crédito às montadoras, está em andamento a criação de um mecanismo para transformar em títulos negociáveis cerca de R$ 25 bilhões em créditos tributários que governos estaduais (R$ 10 bilhões) e federal (R$ 15 bilhões) devem às montadoras em restituições não pagas de operações de exportação e benefícios fiscais. As empresas poderiam depositar esses títulos em garantia aos bancos para assegurar empréstimos mais baratos. Resta saber se os bancos vão aceitar.
Todo o esforço é para tentar fazer chegar às empresas R$ 1,2 trilhão que o Banco Central diz ter liberado em empréstimos e depósitos compulsórios aos bancos, para aumentar a capacidade de financiamento do sistema financeiro nacional. Ao menos o BC já concordou em liberar o acesso de bancos de montadoras a esses recursos, o que eleva o poder de financiar vendas de veículos e estoques de concessionários.
As instituições financeiras também querem garantias das matrizes estrangeiras das montadoras, o que nunca foi problemas antes, mas pode ser agora em momento que essas companhias também passam por profundas dificuldades e igualmente estão tomando empréstimos com garantias estatais, em troca da promessa de profundas reestruturações e de reduzir a produção no exterior para concentrar investimentos e empregos em seu próprio país de origem. Ou seja, o salvamento das filiais brasileiras está longe de ser prioridade agora.
Por exemplo, o Grupo Renault conseguiu na semana passada aprovar linha de crédito de € 5 bilhões com garantia do governo francês, mas para isso apresentou plano que envolve 15 mil demissões no mundo todo, além de concentrar na França sua capacidade de desenvolvimento tecnológico. Em um cenário como esse, é difícil imaginar que matrizes endividadas e comprometidas com seu próprio país terão condições de enviar recursos a subsidiárias que dão prejuízo.
Outro ponto que certamente vai entrar em discussão nos próximos meses é o adiamento de obrigações regulatórias que vão exigir investimentos das montadoras. Como em tese todos os planos de investimentos foram congelados e boa parte das equipes de engenharia está parada, está em risco o atendimento da nova etapa que entra em vigor em 2022 do Programa de Controle de Emissões Veiculares (Proconve P8 e L7), bem como as metas de eficiência energética, adoção de novos sistemas de segurança e aportes mínimos em pesquisa e desenvolvimento previstos até 2022, no primeiro dos três ciclos do programa Rota 2030.
Esta seria uma involução lamentável, o legado nefasto da crise. Ainda que não esteja nada decidido, todos os esforços deveriam ser feitos e cuidados tomados no sentido de evitar qualquer estímulo ao setor sem contrapartidas, que não devem residir somente na manutenção de empregos.
Seria o caso de seguir as melhores práticas de governos no exterior, que reconhecem a elevada importância da indústria automotiva para suas economias, mas para conceder empréstimos e incentivos exigem em troca a garantia de desenvolvimento tecnológico continuado. França e Alemanha, por exemplo, estão adotando programas bilionários de renovação de frota com benefícios fiscais dobrados para veículos elétricos, para assim estimular a parte da economia que, ao crescer, traz benefícios à sociedade e ao meio ambiente.
Embora sempre tragam perdas irreparáveis, crises e guerras sempre foram grandes oportunidades históricas para evoluir ou involuir. A pandemia colocou o Brasil e todos os seus setores econômicos diante desse dilema: pode-se aproveitar o momento para “passar a boiada” do subdesenvolvimento, ou fazer a passagem de transformação para o desenvolvimento socioambiental.
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