O Maio Amarelo e nossa mania de "deixar disso"
Como uma campanha me fez lembrar de nosso "ethos" de escolher sempre o caminho mais fácil
No começo da semana do dia 1º de maio, já na terça-feira, por conta do feriado do Dia do Trabalho, vi diversos ônibus com o adesivo do "Maio Amarelo", um movimento promovido pelo pessoal do ONSV (Observatório Nacional de Segurança Viária). Tirei fotos e pensei em escrever uma matéria a respeito de como a rede municipal de transporte havia aderido. Mas não consegui escrever na terça. Nem na quarta nem na quinta. Foi bom. Pesquisando, achei uma imagem da campanha "Foca no trânsito", promovida pelo Detran-SP. Nesta sexta, ouvi a propaganda na rádio. Tentei achar o áudio no site oficial da campanha, mas ele não está lá. Nem no canal do YouTube do Detran-SP, para onde o site oficial aponta. A postagem mais recente por lá tem mais de um mês. E o que o áudio faz é ser engraçadinho, brincando com uma foca (o animal) para que as pessoas foquem (o verbo) no trânsito. Uma linha diametralmente oposta à da campanha do governo federal que foi duramente atacada por um monte de gente. Só por dizer que "quem resgata animais na rua pode matar". É uma pena. Porque vamos passar mais um "Maio Amarelo" fazendo alertas inúteis sobre algo que deveria ter nossa máxima atenção: a proteção à vida no trânsito. Pior: vamos deixar, de novo, prevalecer a costumeira escolha brasileira pelo caminho mais fácil.
Segundo um estudo da professora Erin Meyer publicado recentemente no Harvard Business Review, os brasileiros são emocionalmente expressivos, mas do tipo que evitam confrontos tanto quanto possível. O quadro abaixo mostra isso da melhor maneira possível.
O que essa campanha mostrou é exatamente isso. Sendo engraçadinho e divertido, o Detran-SP evitou o confronto para provavelmente tentar atingir o maior número de pessoas. Mas de que forma? Quem vai levar a sério a foca engraçadinha pedindo para focar no trânsito? Um trânsito que, vale lembrar, mata 45 mil pessoas por ano. Que não é apenas um problema de segurança, mas de saúde pública. Um número que talvez não choque tanto quanto o anual de assassinatos, na casa dos 60 mil. Mas façamos a reflexão: o quanto saber disso te choca? O quanto você estaria disposto a se mobilizar para mudar essa situação? Qualquer uma delas? Aposto que a maior parte dos brasileiros dirá que pouco ou nada. 45 mil, 60 mil... Isso é estatística. Até pegar alguém da sua família.
Você, que vive em São Paulo e que também pega ônibus, notou os adesivos? Sabe o que eles significam? Também aposto que não. Para esclarecer, o Maio Amarelo tem a pretensão de "chamar a atenção da sociedade para o alto índice de mortes e feridos no trânsito em todo o mundo", como esclarece a própria página da entidade. Coordenar ações entre o Poder Público e a sociedade para diminuir o número de acidentes. A fitinha amarela é para ser usada na lapela, como a vermelha serve para alertar sobre os riscos da Aids e a azul para o câncer de próstata. De novo, um problema de saúde pública. Tanto que é a OMS (Organização Mundial da Saúde) que promove a “Década de Ações para a Segurança no Trânsito”. O movimento existe desde 2014. Mas aposto que você talvez só tenha tomado conhecimento dele agora.
Assista ao vídeo acima, por favor. Ele choca de uma maneira quase lírica. É bonito de doer e alerta para a importância de usar cinto de segurança. Que são a esposa e a filha do motorista. É de arrepiar. E não pega leve. E não contorna o problema. E não tenta ser engraçadinho com um tema que é terrivelmente preocupante. Mas tem gente que pega mais pesado.
Já falei da TAC (Transport Accident Commission) por aqui e vou falar sempre. Porque eles não aliviam na questão de segurança no trânsito. Não ficam tentando evitar confrontos. Vão ao ponto, especialmente no final deste comercial, que é de arrancar lágrimas. "Se você bebe e dirige, você é um tremendo idiota", para ficar na tradução educada. Imagina isso no Brasil? "Nossa, me chamou de idiota, vou reclamar com o Conar". "Nossa, falou que eu mato..." Sim, meu velho, falou. Amadureça e tenha a grandeza de fazer a autocrítica necessária: se você vestir a carapuça, você é um idiota e ponto final. Mas a gente sempre "deixa disso".
Esse último vídeo não parte para imagens pesadas porque não precisa. Ele mostra a hipotética conversa de um cara que estava andando de boa, na dele, e um pai de família que pisa na bola. Erra. Entra na estrada sem olhar. E o pai que erra pede peloamordedeus ao cara que estava vindo para ele diminuir a velocidade porque o filho dele está no banco de trás. Só que essa conversa nunca aconteceu. E o filho do cara que errou vai morrer. Não porque o outro motorista estivesse rápido, em nossa opinião, mas porque não dirigia de forma defensiva. Não dá para contar que o pai do moleque não vai entrar na estrada. Como o vídeo diz, as pessoas erram, mas um motorista prevenido pode diminuir, prevendo que o outro vai pisar na bola. Dar chance aos demais. Talvez de errar de novo. Talvez de aprender e não errar mais, mas vivos. Em outras palavras, não há meias palavras. Não há figuras engraçadinhas. Não há subterfúgios. Quem dirige pode matar. Se você não pode viver com esse tipo de confrontação, você nem deveria ter uma carteira de motorista. Porque um motorista "Pollyana" é um perigo para si e para os outros.
Quando for pegar um ônibus e vir este adesivo, lembre-se do que ele significa. Para quando você estiver ao volante ou quando for atravessar que nem uma vaca louca, correndo entre os carros. Ou quando for andar de bicicleta. A prevenção contra as mortes no trânsito está nas mãos de todos nós. Seja quando somos pedestres, seja quando somos motoristas. Mas, mais do que isso, pare de "deixar disso". É por causa do "deixa disso" que o Brasil está como está. Precisamos cuidar da segurança pública? Ah, deixa disso: blinda o carro e toca a vida. Precisamos prevenir acidentes? Ah, deixa disso e compra esse carro sem controle de estabilidade e barra de proteção lateral... É tão bonito, robusto... Você não sabe dirigir? Precisamos de políticos honestos? Ah, deixa disso e vota neste, que rouba, mas faz. Ou naquele que rouba, mas é o pai dos pobres e tem preocupação social. Não vai mudar nada, mesmo...
Percebe os paralelos? Por essa mania de evitar o confronto, a gente deixa quieto quando aquele deficiente mental para na vaga reservada a cadeirantes. Para "viver bem", a gente não reclama do vizinho que depreda o condomínio. Vai que ele fica bravo? Não confronta o cara que joga lixo no chão. O que faz conversão proibida. O que bebe e dirige. O que rouba ou que defende bandido. O que banca o esperto. É isso que os alimenta: nossa pouca disposição para o confronto.
Pior do que o jeitinho brasileiro talvez seja a velha turma do "deixa disso". Indefinidamente.
Fotos: divulgação e Gustavo Henrique Ruffo
Galeria: Maio Amarelo nos ônibus de São Paulo
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