Campinas, 8 de setembro de 1971. Um Concorde pousou em Viracopos marcando a abertura da Exposição França-71, uma grande feira promovida para apresentar aos brasileiros as mais recentes maravilhas da indústria francesa. Era a primeira vez que um Concorde (no caso, o protótipo F-WTSS, nas cores do fabricante Aerospatiale/BAC) vinha ao país.
A exposição em si acontecia a 90 km dali, no Parque do Anhembi, na capital paulista. Sua faixa inaugural foi cortada por ninguém menos que Giscard d'Estaing, ministro da Economia e futuro presidente da França. Na feira, o público pôde conhecer de perto outra “nave” francesa recém-lançada: o Citroën SM. Era um carro com linhas tão ousadas quanto as do Concorde e voava baixo a 220 km/h, graças à suspensão hidropneumática e ao motor V6 de origem Maserati.
O Citroën SM na Expo França 71, em São Paulo (1971)
O SM foi a maior vedete entre os carros trazidos especialmente para a mostra, ofuscando um Citroën GS, um Alpine A110 e um modesto Renault 4L com pintura especial. "As pessoas ficavam interessadas em ver o seu motor Maserati V6. Outra coisa que também impressionava era o acabamento interno e o conforto dos bancos de couro. Mas o público em geral gostava mesmo é daquela velha história de ver a suspensão subindo e descendo", recorda-se Claude Fondeville, filho do então diretor comercial da Automóveis Citroën Ltda, Michel Fondeville.
O preço do SM no Brasil era supersônico: Cr$ 130 mil. Com esse montante era possível comprar três Ford Galaxie Luxo, um dos modelos nacionais mais caros da época, ou dez Fuscas 1300. Um importado de valor equivalente ao do “Citroën-Maserati” era o Mercedes-Benz 350 SL geração R107, que tinha acabado de surgir na Alemanha.
O Citroën SM na Expo França 71, em São Paulo (1971)
Mesmo assim, havia compradores dispostos a pagar alto por tanto arrojo. O carro trazido para a exposição logo foi comprado por Luciano Nogueira Filho, que era presidente do Instituto Mauá de Tecnologia. Outros clientes apareceram: "Depois da feira, a Automóveis Citroën Ltda vendeu em torno de doze SM no Brasil", puxa pela memória Claude Fondeville.
A história do SM
O desenvolvimento do Citroën SM teve início em 1966, como resposta ao fim da marca francesa Facel (que fazia os esportivos de luxo Facel Vega) e com o intuito de criar um cupê de alto desempenho baseado no Citroën DS. Inicialmente conhecido como Projeto S, o modelo trazia um motor V6 de 2,7 litros e 170 cv, desenvolvido pela Maserati após a Citroën adquirir a fabricante italiana, em 1968.
Projetado por Giulio Alfieri, esse V6 a 90° tinha origem nos motores Maserati V8 de competição. Muito compacto, trazia bloco de alumínio e pesava apenas 140 quilos. Ao longo dos anos, ganharia injeção eletrônica e teria sua cilindrada aumentada para 3 litros, com 180 cv, chegando a equipar os Maserati Merak (1972–1983).
Há dúvidas a respeito do que significam as letras SM. Há quem diga que vem de “Système Maserati”, outros citam “Série Maserati” ou “Sports Maserati”. Uma versão fala em “Sa Majesté” (Sua Majestade, em francês).
O estilo era obra de Robert Opron, que em 1967 já havia posto faróis direcionais e carenados no Citroën DS. No modelo SM, o projetista avançou ainda mais com essa ideia: em vez de grade convencional, o bico do carro trazia, de ponta a ponta, lâminas de vidro curvas que cobriam os seis projetores dos faróis (dois deles direcionais) e a placa da frente. A carroceria era mais larga na dianteira que na traseira, e as rodas de trás eram tampadas pelos para-lamas. O resultado era uma superfície lisa que ajudava a manter o coeficiente aerodinâmico do carro em 0,33.
Citroën SM Opéra - modelo esticado e com quatro portas feito por Chapron
Como o DS, o cupê SM tinha tração dianteira e suspensão hidropneumática — em vez de trazer molas e amortecedores convencionais, seus movimentos eram controlados por esferas cheias de gás e fluido mineral LHM. Uma bomba mantinha o fluido circulando em alta pressão no sistema que atuava não apenas na suspensão, como também na assistência da direção, na embreagem, nos freios e até nos faróis direcionais. Tudo era interligado!
Um botão de borracha, em forma de cogumelo, substituía o pedal do freio. Pisando ali, o motorista simplesmente abria uma válvula, e o fluido sob pressão atuava sobre as pinças dos quatro freios a disco. Como opcional, havia as rodas feitas de resina reforçada (RR), superleves e projetadas pela Michelin, então proprietária da Citroën.
Um dos dois Citroën SM Présidentielle feitos por Chapron
A direção era muito rápida, com apenas duas voltas de batente a batente, pedindo movimentos curtos. A partir dos 100 km/h, a assistência era reduzida, deixando a direção mais firme e precisa. Era um sistema chamado Diravi, sigla de “Direction à rappel asservi” (algo como “Direção servo-retorno”). Soltando-se o volante, mesmo com o carro parado, a direção voltava à posição neutra, com as rodas alinhadas para a frente.
Em um tempo sem assistências eletrônicas, o SM tinha níveis de conforto e estabilidade incomparáveis. Podia manter velocidades altas sobre pistas esburacadas que continuava grudado no chão. Acelerações súbitas, curvas feitas acima da velocidade ideal... O sistema hidráulico compensava qualquer imprevisto.
A aceleração de 0 a 100 km/h era feita em 8,9s e a máxima era de 220 km/h. Lembre-se que estamos falando de um cupê grande (4,91 m de comprimento), que pesava 1.450 kg e foi lançado há mais de 50 anos.
Seu interior luxuoso e original, numa cabine 2+2, também causou impacto. Os bancos individuais eram muito anatômicos e permitiam ajustes incomuns para a época. Materiais de alta qualidade e a ergonomia calculada criavam uma atmosfera refinada. O SM também era muito equipado para os padrões da época, incluindo ar-condicionado e a opção de câmbio automático Warner, de três marchas.
Com instrumentos circulares e volante de apenas um raio, o painel era ao mesmo tempo funcional e esteticamente arrojado. A partir dos 100 km/h, a escala do velocímetro mostrava também quantos metros o carro percorreria numa frenagem até a parada total.
No automobilismo esportivo, o SM teve certo impacto, vencendo o Rally do Marrocos em 1971 e competindo no Grupo 5 com protótipos bem aliviados, embora não tenha alcançado o sucesso esperado em competições.
Citroën SM aliviado para provas de rali Groupe 5
O modelo teve ainda conexões com o governo francês e até soviético! Em 1971, Georges Pompidou, presidente da França, presenteou Leonid Brejnev, líder da União Soviética, com um Citroën SM. O carro era muito utilizado por Brejnev para viagens até sua dacha (casa de campo). Reza a lenda que o desempenho do SM foi secretamente limitado pela KGB para garantir a segurança do estadista.
O encarroçador Henri Chapron fez carros especiais a partir do SM. Em 1972, ele construiu dois exemplares conversíveis, com chassi alongado: eram os SM Présidentielle, que serviram ao governo francês até o mandato do presidente Jacques Chirac (1995-2007).
Também em 1972, Chapron lançou o SM Opéra, um sedã quatro portas de alto luxo, com potência variando entre 178 e 200 cv. Com preço elevado, teve apenas oito unidades produzidas.
Apesar de suas inovações tecnológicas, o SM enfrentou sérios problemas de confiabilidade, especialmente com seu motor V6, que apresentava funcionamento áspero e barulhento. A manutenção e o suporte técnico para seu complexo sistema hidráulico também foram desafios significativos.
Em 1974, a Citroën estava às portas da falência. A Michelin tentou passar o controle da empresa à Fiat, mas a operação foi vetada pelo governo francês. Para evitar que a marca do double chevron caísse em mãos estrangeiras, o Estado estimulou uma fusão da Citroën com a concorrente Peugeot, formando o grupo PSA.
O Citroën DS saiu de linha para a entrada em cena do CX, e a produção do SM foi terceirizada para a Ligier, numa tentativa de reorganização industrial. A Ligier chegou a produzir 135 unidades do SM, mas os dias do arrojado cupê já estavam no fim.
No total, foram feitos 12.920 exemplares do SM — o último deles saiu da fábrica em 1975, em plena crise do petróleo. Em maio do mesmo ano, a Maserati foi revendida ao industrial ítalo-argentino Alejandro de Tomaso.
Embora não tenha alcançado o sucesso comercial desejado, o Citroën SM permanece como um ícone da marca, ao lado de outros modelos emblemáticos como o Traction Avant, o 2CV e o DS. Seu legado é uma fusão de inovação tecnológica e ambição estilística, representando um marco no desenvolvimento de veículos de luxo e esportivos.
De volta para o futuro
Agora, o SM ganha uma releitura criada pela DS Automobile. Trata-se do SM Tribute, um cupê esportivo de luxo de estilo retrô-futurista. Seus primeiros esboços foram resultado de uma competição criativa interna entre os integrantes do DS Design Studio Paris, comandado por Thierry Metroz. A proposta era imaginar como seria o SM hoje, caso tivesse permanecido em linha depois de 1975 e "continuado a se desenvolver ao longo das últimas cinco décadas".
DS SM Tribute 2024 e o O SM original ao fundo
O conceito também serve para comemorar os dez anos desde que a DS Automobiles se tornou uma marca separada da Citroën, na extinta PSA. Hoje, a DS é mais uma das divisões do grupo Stellantis.
A característica cobertura de vidro da frente do SM original foi reinterpretada no conceito como uma tela 3D que atua como conjunto de luzes. A releitura traz tiras de LEDs com facho adaptativo.
Como antes, o carro tem a parte dianteira mais larga que a traseira. Em comparação com o modelo original, o SM Tribute é 3 cm mais longo e 14 cm mais largo (agora são 4,94 m por 1,98 m). Em vez das rodas de 15” do seu antecessor, o novo conceito tem aros de 22” polegadas. Um recorte nas laterais faz referência aos para-lamas traseiros removíveis do carro dos anos 1970.
O SM original de 1970 e o DS SM Tribute 2024
Os retrovisores laterais deram lugar a câmeras, melhorando o fluxo de ar. Mesmo assim, a silhueta incomum do veículo e a pintura Feuille Dorée (folha dourada), do catálogo Citroën de 1971, remetem ao modelo original.
No interior, apenas a curvatura do painel e os assentos têm uma vaga semelhança com o SM clássico. Sendo um conceito, o restante da cabine é repleto de telas, sem controles físicos visíveis. Até o volante retangular (em referência ao formato do miolo do volante original) tem sua própria tela, enquanto o console traz uma tela curva com comandos sensíveis ao toque.
A DS não diz se o SM Tribute traz a suspensão hidropneumática de seu antecessor (o sistema está fora de linha desde o fim do Citroën C5, em 2017). Aliás, a marca não revela qualquer dado técnico sobre o carro. Vale lembrar que, desde a criação da Stellantis, em 2021, Citroën, DS e Maserati voltaram a fazer parte de um mesmo grupo — e a marca italiana hoje dispõe de um motor V6 de três litros chamado Nettuno. No entanto, o mais provável é que o novo conceito seja elétrico.
Como era de se esperar, não há planos de se pôr o SM Tribute em produção — hoje a DS Automobiles está mais empenhada em projetar dois novos crossovers elétricos na plataforma STLA Medium, do atual Peugeot e-3008 III. A divisão premium francesa, contudo, precisará de novos modelos para continuar a existir, especialmente após uma recente declaração do CEO da Stellantis, Carlos Tavares: "Se as marcas não derem lucro, vamos fechá-las".
O executivo não mencionou nomes, mas é fácil imaginar que, entre as 13 marcas do grupo Stellantis, a DS seria uma das mais ameaçadas de extinção.